Encontre o que quer ver

18.4.20

Limbo nos telhados



O primeiro deles que se deixou ver apareceu durante o dia, numa das raras manhãs sem chuva. Entrou pelo portão da praia, sob os olhares de todos que já estavam despertos.  Não tinha a aparência assustadora, como se imaginava e, portanto, sua chegada não causou nenhum alvoroço. Era pequeno, menor ainda do que o supunham. Roupas muito sujas, confundindo-se com a própria sujeira das pernas e das mãos finas que trazia à mostra. Caminhou com passos rápidos entre as pessoas que se esquivavam. Contrastando com toda sua fisionomia, tinha nos olhos um brilho vivo e sagaz. Talvez, por isso, ninguém ousou permitir que seus olhares se cruzassem. Baixavam o rosto à sua passagem ligeira e indiferente a tudo e a todos.

Embora não causasse pânico ou qualquer outra atitude mais evidente, a presença daquela criança andrajosa provocou uma palpável sensação de incômodo. Não o enxotaram e tampouco lhe dirigiram a palavra. No entanto, esquivaram-se dela como se lhes causasse asco ou repulsa. Ninguém trocou sequer uma palavra a respeito daquela inusitada aparição, mas todos sabiam que o pequeno, sujo e maltrapilho, lançara seu olhar faiscante na direção de cada porta aberta e de cada um que cruzou seu caminho em sua rápida passagem pelo casario. Alguns viram também quando um cão afastou-se ganindo, enquanto o pequeno transpunha o portão que conduzia às montanhas, mastigando alguma coisa. Durante todo o resto daquele dia, as pessoas olharam com apreensão para o portão da praia e para todos que por ali passaram. Até mesmo para as crianças do lugar.

Quando aquele dia acabou, trazendo consigo a escuridão encharcada pela chuva que voltou a cair, um silêncio cúmplice tomou conta da noite. Até mesmo os sons costumeiros pareciam mais abafados, ainda que sempre o tivessem sido pela invariável e monótona sinfonia da chuva sobre os telhados. Houve uma nítida impressão que os talheres se tocaram menos em cada mesa e que as vozes se fizeram sussurradas. As pessoas se recolheram mais cedo e as portas se fecharam antes. Essa foi a maior evidência de que alguma coisa parecia preencher o ar espesso e carregado, denotando que algo havia mudado naquele lugar. Seria apenas mais uma noite como outras tantas, não fosse ter aparecido por ali aquele menino andrajoso.

E foi uma noite interminável. Parecia que a chuva era muito mais intensa do que em qualquer outra noite. Ou talvez chovesse como de costume, mas os sons da água batendo nos telhados estivessem mais audíveis, acentuados pela insônia que se apoderou de cada um, em cada quarto, sob cada teto. Olhos e ouvidos permaneceram em atenta vigília, embora a noite se deixasse escorrer na mesmice da chuva que parecia nunca mais terminar.  E que de fato não parou quando o dia amanheceu. E foi somente depois dessa longa noite em que cada mente catalisou para si a ameaça travestida de andrajos, que de fato algo mudou.

Até então não sabiam que uma silenciosa mudança já havia começado muito antes daquela primeira aparição. Cada um daqueles homens e mulheres conviveu por muito mais tempo com a perspectiva de mudanças, sem jamais se dar conta de que elas já vinham acontecendo lentamente, como o musgo que dia-a-dia cobria seus telhados. Foi preciso que o primeiro menino maltrapilho de olhos faiscantes aparecesse, em plena luz do dia, para que começassem a trancar as portas mais cedo e, com ela, os seus próprios medos.

Então puseram-se num estado letárgico e impotente de espera. Uma angustiante espera por algo que lhes aconteceria, que não poderiam supor o que fosse e em que momento aconteceria. A hora da mudança definitiva se lhes afigurou clara e insofismável, personificada naquele menino franzino, sujo e de olhos que lhes perscrutava. a alma.

*

Os primeiros a mencionar que provavelmente deixariam o lugar foram os donos das maiores e mais bonitas casas de veraneio. Foram os que mais sentiram ameaçada a sua pretensa hegemonia. Tão logo se instalaram por ali alguns outros veranistas e ergueram suas casas mais simples, já se podia notar que a ostentação hipócrita passou a dar lugar a um desdém mal-dissimulado por sorrisos forçados e distribuídos com certa parcimônia. Estes foram os primeiros a supor que sua integridade estava ameaçada pela aparente deterioração que se insinuava pela presença dos novos vizinhos menos abastados. E postaram-se em defensiva.

Aos poucos se deixavam fazer íntimos e por vezes afáveis, como se dessem a seus inoportunos novos vizinhos a corda para a própria forca. A cada gesto amistoso que procuravam demonstrar, faziam evidenciar que havia uma distância a ser guardada pelo invisível, mas palpável, muro da hipócrita ostentação que a cada dia acentuavam. Certamente isso tudo era muito bem compreendido pelas partes, uma vez que guardavam prudente distância uma da outra. Cada qual cavando sua trincheira. 

O tempo, em sua sábia trajetória, fez com que as camadas desse limbo fossem se assentando sobre os telhados de cada um, indiferentes. Menos diferença fez o limbo sobre as casas mais simples, pois estas já tinham visto chuva e umidade suficientes para saber conviver com eles. E, ainda assim, sentiam-se sufocar pelo acre bolor que exalava cada vez com mais profusão daquelas casas. E não estranharam quando os primeiros se foram, deixando para trás o mofo em suas paredes e pegadas fundas nas poças de lama do caminho até o portão que saía para as montanhas.  Isso aconteceu logo após as primeiras noites de chuva intensa, quando os pequenos começaram a fazer suas invisíveis incursões noturnas pelas vielas escuras.

*

Nos últimos tempos, a vigilância parecia mais ostensiva e os intervalos entre as rondas haviam diminuído sensivelmente. A cada pouco podia-se perceber um pequeno vulto cinzento esgueirando-se rápido e dissimulado pelas vielas escuras, desaparecendo a seguir nas sombras dos becos entre uma casa e outra. Algumas frestas das janelas do casario deixavam escapar fiapos de luz que se projetavam nas poças de lama. Quando não havia chuva, o silêncio só era quebrado pelo distante e abafado som dos animais noturnos e por ruídos próprios da escuridão. Mas a presença deles era pressentida à menor oscilação do vento, como se sua própria respiração os revelasse entre a folhagem dos arbustos. Ou então pelo ruído mais audível de pés que pisavam os charcos. Eram os pés deles, com certeza.

Tanto o portão das montanhas quanto o da praia eram trancados assim que a noite chegava. Embora não pudessem vê-los, sabiam que ali os pequenos concentravam sua vigilância e por isso ninguém mais ousava transpor os portões depois que escurecia. Temiam um ataque, apesar de saberem que isso nunca ocorrera antes e de acalentarem a íntima esperança de que isso não viria ocorrer. Nem mesmo quando da última fuga isso aconteceu. Naquela vez, a noite encheu-se de uivos lancinantes e os pequenos vultos cinzentos e sorrateiros cruzaram os becos incontáveis vezes. Ninguém ousou manter luzes acesas, mas sabia-se que em cada fresta das janelas havia olhos medrosos tentando vislumbrar qualquer vulto na escuridão. Depois, quando as primeiras luzes silenciaram de vez a agonia dos pequenos, soube-se que estes não haviam impedido a fuga. Talvez porque o único a escapar fosse velho e bêbado e o achassem inútil.

As aparições passaram a ser cada vez mais frequentes e numerosas. A cada manhã sem chuva surgiam de ambos os portões, incontáveis pequenos vultos cinzentos e maltrapilhos, tão sujos quanto as poças de lama que se acumulavam nos caminhos e nos becos. Eram extremamente silenciosos no seu vagar pelas vielas entre as casas. Aguçavam seus olhos faiscantes em todas as portas abertas e em cada rosto. Embora quietos, os maltrapilhos passaram a demonstrar um pouco mais de audácia e já não roubavam alimentos somente dos cães. Insinuavam-se por uma porta e fixavam o olhar em quem quer que estivesse dentro da casa. E assim ficavam, olhando e aguardando, olhando fixamente e aguardando interminávelmente, até que lhes atirasse um pedaço de pão.

Algumas casas haviam sido abandonadas por seus donos e permaneciam de portas fechadas, esverdeando-se a cada noite. Contudo não eram muitas as casas fechadas, pois com o passar das manhãs sem chuva, ficou muito mais difícil deixar o lugar. Julgavam que os portões estivessem vigiados pelos pequenos e não tinham mais coragem para sair, exceto durante o dia, para comprar mantimentos. Nessas incursões eram seguidos por inúmeros olhos faiscantes que os acompanhavam até adentrarem o portão novamente. Assim mesmo alguns fugiam quando a noite caía e supunham que os portões abertos não estivessem sendo vigiados. Mas nos últimos tempos os portões passaram a ser trancados, tão logo a noite caía.

Os que não tinham reunido coragem para tentar fugir, também não ousavam fechar suas portas durante o dia. Permaneciam dentro de suas casas, esperando que um rosto pequeno e de olhos luminosos assomasse e ficasse à espera do pão. As crianças do local eram os únicos a não sentir medo dos pequenos cinzentos e até se atreviam a caminhar com eles pelas poças d’água que nunca secavam. Nos primeiros dias foram repreendidos, mas depois tiveram muda aprovação para circularem à vontade junto à horda crescente de cinzentos maltrapilhos.  E já não era mais somente nas manhãs sem chuva que eles apareciam. Bandos silenciosos, como espectros esquálidos, chapinhavam o lamaçal das vielas mesmo quando a água da chuva insistia em murmurejar nos telhados cada vez mais verdes, em intermináveis e monótonos concertos.

Assim definhavam os homens e mulheres daquele lugar, presos em suas próprias casas com odor insuportável do mofo dos dias de chuva, visitados pelo cinzento silêncio dos meninos de uma só cor, todos fundidos à lama, todos da mesma cor que a chuva não conseguia alterar, todos com os mesmos olhos de pedir e perscrutar suas almas. Assim começaram a sucumbir os mais fracos, que deixaram de sair pelo portão das montanhas para buscar o pão vigiado, ou que por ele deixaram de escapar. Assim foram morrendo afogados pela lama de suas vielas ou pelo mar que abraçava a fuga impossível. Assim foram ficando mais verdes seus telhados.

Até que numa manhã, a segunda consecutiva em que o sol insistia inutilmente em secar as poças daquele lugar, nenhum menino apareceu. O portão da praia encontrava-se escancarado, talvez há muito tempo. O portão das montanhas entreaberto. Por nenhum deles entrou sequer um menino maltrapilho e eternamente calado naquela manhã. As poças, já menos numerosas, não foram pisoteadas pela horda de pequenos pés magros e descalços. Nenhum rosto sujo assomou em qualquer porta a olhar e esperar. Nenhum pequeno corpo cinzento e maltrapilho se esgueirou pelos becos e pelas vielas.

Pouco a pouco, cada janela foi se abrindo e deixando à mostra um rosto de olhar incrédulo. Logo os moradores foram deixando suas casas, caminhando receosos e cambaleantes como zumbis. Ao se darem conta daquele inesperado vazio de vultos cinzentos, incontinente, correram, pisoteando a lama com passadas trôpegas. Ganharam o portão. Embrenharam-se rumo à montanha, deixando para trás a vila vazia, com suas casas esverdeadas e seus telhados cheios de limbo. Não ousaram olhar para os lados, pois sabiam que em cada moita haveria um par de olhos faiscantes à espreita.

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Publicado no livro "O Encantador de Passarinhos - e outras histórias"
Clube de Autores - São Paulo - 2011






25.3.20

A mordaça


Eram três irmãs, todas de nome Maria. A mais velha era dos Remédios, a do meio do Rosário e a caçula da Penha. Em comum, além do primeiro nome e do fato de serem todas solteiras, uma incorrigível língua ferina, da qual não escapava quase nada ou ninguém. Por essa razão não cultivavam amizades, e a vizinhança guardava-lhes prudente distância. Ainda assim não escapavam de suas maledicências, às quais procuravam não dar ouvidos, evitando certeira confusão.

Certa feita, a troco de nada, cismaram as três de infernizar a vida de um casal que morava duas casas adiante, na mesma rua. Cismaram porque cismaram, pois o jovem casal não dava um dedo de motivo para qualquer falatório a quem quer que fosse. Dos Remédios foi quem iniciou a questiúncula, falando em alto e bom som, para quem quisesse ouvir, que o rapaz não era de tomar banho. Onde já se viu! Do Rosário espalhou pela vizinhança que as cuecas dele, penduradas no varal, eram todas borradas na bunda, ao que da Penha acrescentou serem também furadas.

Como um rastilho de pólvora, as três Marias fizeram as infundadas e venenosas afirmações correrem rua acima e rua abaixo. Num instante chegaram aos ouvidos do casal. A moça quis tomar satisfações com as irmãs quarentonas, mas foi demovida da intenção pelo rapaz, que achou mais prudente não dar corda ao assunto.

Logo do Rosário percebeu que a investida não produzira efeito, e tratou de espalhar que a moça, com "aquela cara de santinha", era dada a escapadelas extraconjugais enquanto o marido saía para trabalhar. Prontamente contou com o testemunho das duas irmãs, que juravam terem visto, mais de uma vez, um homem entrar furtivamente na casa, em plena luz do dia. Desta vez a língua das Marias fora longe demais, e tão logo o burburinho na vizinhança bateu às portas do casal, houve indignação e revolta.

Nem cuecas sujas, nem traição. Foram ambos tomar satisfações com as três irmãs, pois a coisa passara da conta. Da Penha, que da janela viu o casal se aproximando, alertou as irmãs. Foram as três para o portão, onde um bate-boca interminável começou. O casal procurava manter a linha, apesar de tudo, mas dos Remédios, do Rosário e da Penha destamparam o fosso de maledicências que cultivavam, e dele saíram coisas tão sórdidas como ninguém jamais ouviu.

Ofendidos, humilhados e espezinhados pelo dantesco fuzuê, marido e mulher acharam  que o melhor seria chamar a polícia, e assim fizeram. Da rua, que fervilhava de mulheres que preferiram assistir aquele banzé todo do que à novela das oito, foram os cinco e mais duas testemunhas do casal para a delegacia, em duas viaturas.
            
Por pouco o delegado não enlouquece, pois as três Marias não se intimidaram com a sua autoridade, e continuaram com os impropérios, como três medusas loucas e alucinadas. Prender as mulheres seria despropositado, mesmo diante de tanta insolência. O delegado preferiu abrir inquérito por difamação e calúnia e liberar todo mundo, pois não queria se aborrecer com tamanha anarquia em sua delegacia.
            
Tarde da noite, ainda alguns moradores da rua aguardavam o desfecho do forrobodó, plantados em seus portões ou debruçados na janela. Mas pouco ou nada viram. O casal voltou a pé e trancou-se em sua casa. Do Rosário, da Penha e dos Remédios desceram de um taxi, e fizeram o mesmo.
            
A vizinhança foi se recolhendo, decepcionada com epílogo tão modorrento e sem graça. Esperavam tapas. Prisão, talvez. Mas, nada. Apenas as portas quase vizinhas dos grupos oponentes se fechando, e a noite assumindo seu reinado silencioso naquela rua da periferia.

            
Como explicar o que vai na alma de certas pessoas, quando não há explicação plausível a se dar? Inútil tentar. Abre-se aqui este parênteses, apenas para dizer que alguns atribuíam as sandices das três irmãs ao sobrenatural. Estes diziam que poderosas forças do mal invadiam a alma de cada uma delas, fazendo-as perpetrar as mais sórdidas maldades contra as pessoas, sem mais nem porquê. Os defensores dessa linha de pensamento acreditavam piamente na existência de caldeirões fumegantes dentro da casa das Marias, o que jamais alguém pôde provar. Outros, no entanto, reputavam o modo de ser das irmãs a causas menos espirituais. Como não se pretende aqui tomar partido, fica apenas o registro de que também a vizinhança daquela rua tinha um pouco do mesmo germe que acometia as três irmãs, razão pela qual não se pode de pronto rotular este ou aquele. Dito isto, é melhor voltar aos fatos. 
            
Dado ao que se supunha saber das três Marias, era de se esperar que tal furdúncio não acabasse num ato só. De maneira que, mesmo que ninguém dissesse mais palavra a respeito dos acontecimentos daquela noite em que foi todo mundo parar na delegacia, havia no ar uma natural expectativa quanto a uma nova investida. Era só uma questão de tempo.

E não foi preciso muito tempo para que acontecesse. Menos de uma semana depois, do Rosário tratou de fazer correr nova notícia escabrosa sobre o casal. Com o testemunho  irrestrito  das outras duas Marias, passou a alardear que o casal não tinha filhos pois Silvano, que era esse o nome do rapaz, não dava conta do recado. Da Penha logo emendou que era em razão disso que Adélia recebia visitantes em plena luz do dia, enquanto o marido trabalhava. E dos Remédios, para não perder o mote, anuiu que tanto um quanto outro, não bastasse essa pouca vergonha, ainda roubavam mercadorias no mercadinho do seu Ernesto!
            
Pronto! Desta vez Silvano quase perdeu a razão. Partiu de arma em punho para o portão das fofoqueiras, mas foi contido pelos vizinhos, que afinal, não queriam ver nenhuma desgraça. O próprio seu Ernesto aconselhou Silvano a manter a calma, dizendo que aquilo não passava de sandices sem pé-nem-cabeça.
            
Só depois de muita confusão na rua apinhada, foi que a coisa mais ou menos se resolveu, com nova comitiva adentrando a delegacia do bairro, para desespero do delegado.

*

Neste ponto convêm encurtar um pouco a narrativa, pois logo se vê que o enredo há de ser o mesmo. Só é preciso acrescentar que ainda outras vezes as Marias fizeram e falaram das suas contra o pobre casal, e que ainda outras tantas vezes foram todos parar na mesma delegacia. Fato é que a rotina das pendengas entre as três irmãs e o injustiçado casal já ia perdendo o interesse da maioria dos vizinhos. Por mais cáusticas que fossem as infundadas asneiras propaladas pelas Marias e por maior que fosse a indignação do casal, já todos sabiam que a coisa terminaria no plantão policial e dai não haveria outra conseqüência.
           
Mas as coisas iriam tomar novo rumo pelas mãos de um certo juiz, a quem chegou finalmente o processo de difamação e calúnia. Convicto de que nenhuma pena convencional que se impusesse corrigiria aquelas três quarentonas, preferiu o juiz, aplicar a chamada pena alternativa. Iriam elas, de maneira exemplar, prestar serviços à comunidade.
            
E assim foi que do Rosário, da Penha e dos Remédios receberam, com certo pânico, a terrível sentença: trabalhariam por um ano, todos os dias, seis horas por dia, como ajudantes na cozinha do hospital público do bairro. A pena parecia até bem leve, não fosse pela exigência de que toda a jornada fosse cumprida pelas Marias devidamente paramentadas, inclusive com o protetor a tapar-lhes a boca. Questão de higiene mais que necessária para o local da prestação do serviço. Mas, para todos quanto acompanharam a pendenga desde o início, e souberam da sentença, o detalhe teve outro significado. Finalmente, com extrema sabedoria e simplicidade, alguém havia colocado uma mordaça naquelas bruacas.
         
Fato é que, antes mesmo de cumprida toda a pena, do Rosário, dos Remédios e das Dores já aparentavam sensível mudança de comportamento. Eram vistas a escancarar sorrisos, sem qualquer motivo aparente. A expressão angelical de quem tinha a alma limpa que passou a andar estampada no rosto das irmãs, causou certo espanto, a princípio.

Os que defendiam causas sobrenaturais diziam que a mordaça teve grande efeito moral. A vergonha da boca tapada acabara expulsando definitivamente os demônios daquelas almas. Mas há quem diga que o que deu jeito mesmo na questão foi Possidônio, chefe de cozinha lá no hospital. Este sim, de alma boníssima, o tempo todo deu seu apoio e consolo às três Marias, visitando-as todos os dias depois do expediente. 


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Publicado no livro "O encantador de passarnhos - e outras histórias"
Editora Clube de Autores - SP - 2014

19.3.20

Efigênia




Tá pensando que só porque a Efigênia morreu eu vou contar essas coisas? Não é não, que eu sempre falei na cara dela enquanto ela era viva. E olha que não foi nem uma nem duas vezes que eu falei. Ela sabia, melhor do que ninguém, o que eu pensava, pois eu vivia repetindo, Efigênia, Efigênia, olha lá que isso não vai dar certo. É sim, porque eu sou de falar o que eu penso na cara das pessoas e não mando recado, não senhor.  E com a Efigênia nunca foi diferente, apesar de ela achar que era pura implicância minha. Ela me dizia, larga do meu pé que da minha vida cuido eu, a mal agradecida. Tá vendo no que deu? Se ela tivesse me ouvido... Não vou dizer que ela ainda estaria viva agora, só por ter me ouvido, porque essas coisas de morrer é assim mesmo. Acontece quando menos se espera. Só que a pobrezinha morreu de um jeito... Ah, meu Deus, tanto que eu falava com aquela cabeça dura. Efigênia, não faz assim, Efigênia, que se um dia ele descobre, você tá porca na vida. Você conhece bem o teu marido Juvenal, né? Mas ela não. Achava que era muito dona do seu nariz e agora taí. Deu no que deu. Ela morta e enterrada e o pobre do Juvenal, ai coitado, como ele chorou quando ela morreu. Até me deu dó. Se bem que ele não era nenhum santinho! Eu é que sei, porque a Efigênia me contava tudo, e muita coisa eu acabei descobrindo sozinha, que a gente também não é boba. Quanto tempo ele enganou todo mundo, o cretino! Teve um dia que o Juvenal chegou em casa já passava da meia-noite, num cheiro de cerveja, que vou te falar uma coisa. Acho que foi numa sexta-feira e ninguém nem desconfiava de nada ainda. Dava pra sentir de longe o bafo de cerveja do Juvenal. A Efigênia ficou uma fera por causa da hora que ele chegou, mas não abriu a boca. Aí eu disse pra ela: você não vai falar nada, Efigênia? Saberá com quem ele estava até essa hora, bebendo feito um gambá! Se o marido fosse meu, não deixava nem entrar em casa! Mas a Efigênia, e isso ela tinha de bom, não sabia fazer mal nem pra uma mosca. Deixou o Juvenal entrar e não disse um "a". Eu tenho pra mim que foi depois desse dia que a coisa começou a desandar. Se a Efigênia tivesse brecado logo no começo, mas não, ela ficou quieta e como diz o outro, quem cala, consente. Tive um pouco de dó da pobrezinha da Efigênia, que só sabia chorar pelos cantos da casa, mas era culpa dela, que ficava de boca fechada e deixava o Juvenal fazer o que bem entendia. Em casa, ele dizia que tinha ficado no bar com os amigos, mas nas redondezas todo mundo já comentava que ele tava era enrabichado por uma boazuda lá do serviço dele, o cachorro. Eu fico indignada com essas coisas! Homem é tudo igual, eu sei, mas a pobrezinha da Efigênia não merecia isso, mesmo sabendo que ela era um pouco culpada. Eu falava isso pra ela. Eu dizia, Efigênia, porque você não mostra pra ele que é melhor que a tal da sirigaita lá do serviço dele? E ela só dizia eu mostro, eu mostro, mas vai saber se ela entendia o que eu queria dizer. Vai ver ela pensava que era fazendo a lazanha mais caprichada nos domingos! Aí, teve um dia que eu não agüentei e falei pra ela, é na cama que você tem que ser melhor, entendeu, Efigênia? É na cama e não na mesa, que comida boa qualquer um encontra em muito restaurante por aí. E a Efigênia, com aquela cara de madalena arrependida que ela fazia de vez em quando, só ficou me olhando, como se eu fosse uma rameira que tivesse falado a maior pouca-vergonha do mundo. Naquele dia eu acho que até fiquei um pouco vermelha, porque senti um calorão medonho na cara, mas, fazer o quê? Eu tinha que dizer isso pra Efigênia uma hora qualquer. Aí eu falei e não me arrependo nem um pouco. Não sei o que ela pensou de mim, mas que eu falei, falei. E de mais a mais, se ela fez ou não fez a lição de casa, não é problema meu. Eu acho que ela continuou só na lazanha, que aliás ela fazia muito bem, pois o filho duma mãe do Juvenal, marido dela, continuou chegando em casa tarde, quase todo dia. E a coitada da Efigênia sempre de boca fechada, aturando uma situação dessas. Teve só um dia em que eles discutiram feio, já devia ser mais de uma da madrugada. Acho que ela não teve mais como segurar e acabou reclamando da situação. E não é que o  cachorro do marido dela falou pra coitadinha que se ela começasse a encher o saco, ele se mudava pra casa da outra? Como é que pode uma coisa dessas! Ah, se meu finado Tonico me dissesse isso!  Eu é que tinha matado ele, e não o enfarto! Mas a Efigênia não, aquela tonta. Chorou, chorou, chorou e ainda falou meu Juvenal, não faz isso, meu Juvenal. Cachorro! E naquele dia o cretino ainda quebrou dois pratos. Eu nem me meti, porque essas coisas de marido mulher eles é que têm que resolver. Mas depois desse dia, a Efigênia começou a mudar um pouco. Não ficava mais com aquela cara de desconsolada o tempo todo. Nem se afetava com as coisas que quebravam na casa dela. Um dia era a geladeira, outro dia era a máquina de lavar e noutro era a televisão. Parecia um castigo. Como quebravam as coisas na casa dela. Quase todo dia tinha um técnico disso ou um especialista daquilo outro tocando na casa da Efigênia. E era cada visita demorada! Um dia eu até comentei com ela, porque você não faz o seu marido te comprar geladeira nova, máquina de lavar nova. Já que ele não vale nada mesmo, pelo menos isso ele tem obrigação de fazer. Do contrário, você vai ficar gastando um dinheirão consertando. Vale mais a pena comprar tudo novo. Mas a Efigênia, coitada, acho que morria de medo de pedir qualquer coisa pro Juvenal, com medo que ele fosse morar com a outra. E ficava naquele conserta que conserta que não acabava mais. Se eu fosse contar quantas vezes só o homem da televisão foi lá na casa dela... Perdi até as contas. Problema deles. Mas teve um dia que eu falei uma poucas e boas pra Efigênia. Foi no dia que ela veio me contar que estava de caso com o Zezinho  da padaria. Eu fiquei escandalizada. Eu falei, Efigênia não faz isso! Não é porque o teu marido não presta que você vai fazer igual ele. Efigênia, Efigênia. Se teu marido descobre ele te mata. Isso não vai dar certo, Efigênia. Tanto eu falava que acho que ela acabou me ouvindo, pois depois de um certo tempo ela largou mão. Bom, é melhor eu ir parando com esse assunto, porque agora a Efigênia tá morta. Que desgraça, não gosto nem de lembrar! Foi assaltada na porta do supermercado, em plena luz do dia. Luz do dia modo de dizer, vai, que já devia ser umas sete e meia da noite. Levaram uma mixaria que ela tinha na carteira e ainda atiraram nela. Coitadinha. Tanto sofrimento em vida, com um marido daqueles e ainda me acabar desse jeito, assassinada por um bandidinho pé-de-chinelo, que não prenderam até hoje. Tem horas que eu fico pensando certas coisas, mas é melhor nem falar nada. Ainda bem que aquele sem vergonha se mudou daqui. Imagina que ele teve a coragem de vir me avisar, menos de um mês depois que a Efigênia morreu, que queria trazer a desqualificada da amante pra morar aqui! Me subiu o sangue e sabe o que eu falei pra ele? Mas nem que eu estivesse morta ia acontecer uma coisa dessas! No meu quintal? Aqui não entra vagabunda nenhuma, eu disse. E tem mais, eu falei, vê se arruma outro lugar pra morar. Falei mesmo! Tá pensando o quê? Ainda bem que ele não insistiu no assunto, porque senão eu nem sei do que seria capaz. Só sei que três semanas depois encostou um caminhão e levou a mudança. Ele me pagou o aluguel direitinho, até o último tostão. Pelo menos isso o ordinário fez. Depois dessa situação toda eu vou pensar muito bem se vou alugar de novo os cômodos dos fundos. A gente nunca sabe como são as pessoas. Tá certo que hoje em dia não dá pra dispensar um dinheirinho, por pouco que seja. Pelo menos uns trezentos eu acho que vale o aluguel. O Juvenal me pagava cento e cinquenta. Bom, outra hora eu penso nisso. Só tem mais uma coisinha que eu queria dizer, porque isso fica me remoendo aqui na cabeça: no dia que o Juvenal se mudou, eu fiquei de olho. E sabe o que eu reparei? A geladeira que a Efigênia vivia consertando parecia tão nova... Não sei porque dava tanto problema. Acho que hoje em dia não se faz mais geladeiras como as de antigamente.
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Publicado no livro "O Encantador de  Passarinhos" - 
Clube de Autores - São Paulo - 2011

O sonho e a probabilidade



Nem tanto à propósito, mas me ocorreu agora como o ser humano tem imensa capacidade de sonhar e acreditar no improvável. Quando não, no próprio impossível. Um exemplo: cada vez que uma dessas loterias de números acumula zeros à direita de qualquer algarismo, o fenômeno se manifesta com grande intensidade.

As filas que se formam diante dos guinches das casas lotéricas estimula as pessoas a trocarem ideias sobre o que fariam se ganhassem a bolada toda. O assunto vira até pauta de programas de rádio e televisão, tamanha a força que as cifras exercem na imaginação das pessoas. Confesso que não deixo de fazer minha “fezinha” nessas oportunidades.
            
Noutro dia, um homem à minha frente na fila para jogar numa dessas loterias acumuladas, alardeava a quem pudesse ouvir, de que maneira gastaria a grande bolada. Começou jurando que mandaria o seu patrão para algum lugar pouco recomendável, e que colocaria uma bomba debaixo de sua cadeira. Depois disse que compraria casas, carros, iates, fazendas, e tudo o mais que lhe viesse à cabeça. Em vinte minutos, gastou uma dinheirama absurda, com os sonhos de consumo mais estapafúrdios que lhe ocorreram, entremeando-os com vinganças pessoais sem qualquer propósito. E assim foi até que chegou a sua vez de fazer o jogo. A mocinha do guichê de apostas devolveu o volante ao gastador, e desejou boa sorte. E lá se foi ele, rindo à toa e acreditando que o seu jogo seria o ganhador.
            
Como a grande maioria, e como eu também naquele momento, o homem da fila nem se deu conta de que a chance dele vir a acertar o resultado pode beirar o absurdo de uma entre cinquenta milhões. Isso aumenta enormemente as possibilidades do seu patrão não ser atingido pela tal bomba. E já que estou falando em probabilidade, creio que ela seja muito grande de que eu veja o mesmo homem na fila da casa lotérica numa próxima loteria acumulada qualquer. Nesses casos, diria a velha sabedoria popular: a esperança é a última que morre, a fé é uma grande virtude, muito embora a vingança não seja propriamente um bom sentimento.

7.3.20

Rega-bofe













Tem coisas que é melhor nem tentar arranjar explicação, pois não vai ter nenhuma mesmo. Se já sabiam que por um nada o camarada se metia em confusão, pra que é que foram convidar? E quem foi que teve a ideia de chamar também João Francisco se ninguém desconhecia que João Francisco e Bartolo não se bicavam desde que Bartolo também vinha tentando se enrabichar por Cristininha, heim? Quem foi? Deve ter sido o capeta, decerto, pois só mesmo o coisa-ruim pra botar essas pessoas juntas no mesmo ônibus de excursão. Só pode ser. Mas a coisa já estava feita e não dava mais tempo pra desmanchar, quatro da manhã, hora do embarque. De forma que João Francisco sentou-se no segundo banco, Bartolo foi com seu pandeiro lá pros fundos, junto com a turma do batuque, e Cristininha ficou ao lado da mãe, na 23. E pé na estrada.

A manhã estava garoenta e um vento frio soprava do mar virado quando chegaram. E quem falou que isso incomoda? Alguns já desceram do ônibus cambaleando, tanta bebida misturaram no caminho. Quem veio de calção por baixo, já estava prontinho pra rolar na areia e cair na água gelada. Aí fizeram revezamento. Primeiro as mulheres e depois os homens usaram o ônibus como vestiário e quando João Francisco percebeu, Cristininha já estava toda pimpolha metida num biquini preto. Mais tarde, em meio à pelada que corria solta, foi Bartolo quem reparou que Cristininha se desmanchava conversando com um sujeito. Pensou que fosse João Francisco, mas depois viu que João Francisco estava no gol. E a coisa foi esquentando, até que os dois viram quando Cristininha se agarrou com o sujeito, que nem do ônibus era, cheia de amores. Um olhou pro outro, o outro olhou pro um e sem dizer nada, foram até lá e cobriram o cidadão no cacete, até chegar a turma do deixa disso. Cristininha voltou na 23, ao lado da mãe. João Francisco pediu o pandeiro de Bartolo emprestado e foi lá pro fundão, com a turma do batuque. Quem não dormiu, voltou cantando.
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Publicado na Coletânea "A Pizza Literária - sexta fornada" - Legnar Editora - SP - 2000
Publicado no livro "Pipas no caminho - e outros escritos guardados no tempo" - Rumo Editorial - SP - 2018"

20.2.20

Longe
















Vejo um resto do luar
que penetra da janela
escorrega pelo quarto
e espreita meu silêncio.
Logo sinto que essa luz
espalhada no meu chão
é tão densa quanto o longe
deste pensamento meu.

Sigo os traços dessa lua
pouco a pouco se acabando
esvaindo-se nas frestas
do meu quieto devaneio.
Acho então este momento
mesmo breve e tão fugaz
tão mais doce quanto o antes
que bem longe se perdeu.
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Publicado na Antologia Paulista - Vol.2 - Legnar Informática e Editora - São Paulo 2000
Publicado no livro "Pipas no Caminho - e outros escritos guardados no tempo" - Rumo Editorial - São Paulo 2018


11.2.20

Infâncias de antigamente
















Na esquina de minha antiga rua
ficou o sonho
junto ao pega-pega e ao pião.
Carrinho era lata velha de sardinha
entreaberta, puxada por um cordão.
Mas foi bom.
Ana-Mula, esconde-esconde, 
mãe-da-rua, balão.
Ficou também nessa esquina
a pele do meu joelho
na memorável pelada contra a rua-de-cima
que tinha um timão.
Mas ganhamos, e foi bom.
Na esquina da minha antiga rua
tinha goiabeira.
Goiaba roubada é que era bom.
Tinha a vidraça da Dona Maria
que volta e meia se espatifava no chão.
E um ninho de marimbondos
que vivia cravado de setas de papel.
Marcha-soldado, sentido, atenção!
Nossa, como foi bom.
De vez em quando olho a criançada 
brincando na rua.
Dá vontade de gritar:
No meu tempo é que era bom!
... Ou será que não?

***
Publicado na Antologia Paulista - Vol.2 - Legnar Editora - SP
Publicado no livro "Pipas no caminho - e outros escritos guardados no tempo" - Rumo Editorial - SP

2.12.19

Minha cidade



Poesia de minha cidade não requer compassos
Pois tudo nela é cacofonia:
Cada canto obscuro, cada sombra de viaduto,
Cada placa de contra-mão, cada indigente,
Cada acidente, cada homem vestido de terno,
Cada mulher e cada árvore moribunda,
Todas as suas mazelas, todos os seus problemas,
Toda sua volúpia, todo seu encanto,
Toda sua grandeza, toda sua miséria,
Todas as suas cores e todos os seus segredos.
É poesia que não acaba mais.

A poesia de minha cidade não tem rimas
Pois simplesmente não precisa delas.
Desenfreada, desvairada, tresloucada,
Às vezes louca, outras vezes pouca,
Indiferente, indecente, cheia de preguiça,
Muitas vezes solidária, noutras tantas omissa.
Pra que serve a rima nessa cidade?
Ela é tudo, rima com o que precisar e com quase nada.
A poesia de minha cidade fica na intenção.

Que métrica há nesta cidade sem eira nem beira?
Como marcar qualquer ritmo para este lugar?
Meninos n’algumas esquinas tampam retrovisores com flanelas
Vendendo balas e chicletes;  n’outras, há assaltos e assassinatos.
Mulheres guardam lugar na fila para por os filhos na escola,
E nem sabem o que esperam de seus filhos nem de si mesmas,
Mas guardam lugar na fila.
Motoqueiros alucinados chutam veículos nas avenidas
Abrindo caminho para seu recado urgente, seu ganha-pão.
Alguns morrem. Outros não.
Tudo é muito desigual.
Não há como metrificar esta cidade que precisa respirar.
  
Talvez minha cidade nem precise de poesia
ou não queira nenhum verso para si.
Quiçá espere apenas um epitáfio.
____________________ 
Apresentada na VIII Jornada Médico-literária Paulista - 2005 - Serra Negra - SP
Publicada nos Anais do Evento
Publicada no livro "Pipas no caminho e outros escritos guardados no tempo" - Rumo Editorial - SP - 2019

7.9.19

Dois limeriques



I
Deitava numa rede a balançar,
o tempo todo querendo descansar.
            Alto sonhava
            e logo pensava
em esperar, esperar, esperar...


II
Pensou saber da vida o sentido
e julgou-se um grande entendido.
            Analisou, arguiu
            e por fim descobriu:
não sabia, mas julgava compreendido.
__________________________
Publicados na Antologia Paulista - Vol.12
Rumo Editorial - São Paulo - 2019


24.8.19

As boas sementes



(...) O caminho quase sempre é uma experiência incrível e muitas vezes supera os prazeres do destino. Essa eterna busca pela boa colheita que aflige quase todos pode ser um bom exemplo disso. Não é maldizendo as intempéries que se chegará à colheita  mais farta. Ao contrário, é melhor e mais prudente compreender os significados das adversidades, aprender com elas e precaver-se, para assim, usufruir melhor da lavoura que cuidamos. O mal e o bom fruto são  produzidos a partir da semente cultivada. Semear a melhor semente quase sempre resulta em colher bons frutos. (...)
_________________
Publicado na Antologia Paulista Vol.12
Rumo Editorial - São Paulo - 2019

17.8.19

Versos inacabados



(por pouco seriam um poema...)

Fico a olhar as poesias,
alheias e arredias.
Também são minhas, são muitas,
intensas e às vezes tardias

Uma vitrine infinita,
onde  não se acaba a vaidade
e nada se mede,
nem se mira ou se cala.
Apenas invade.

Querem apenas ser poesia
Eterna mesmice, tão gasta,
de poetas anônimos ou apaixonados
Densa poesia, tão vasta...

(...cabeças pendendo no nada,
que se gabam, se iludem e se acabam.
Tolas, fúteis e vaidosas...
De que serve essa efemeridade?
Como a própria poesia,
a palavra é torpe
e apenas se recria.)

Plural:
Tantas e somente elas,
senhoras de si mesmas.
Não temem ser muitas,
e muito menos se bastam:
as palavras apenas se gastam.

Singular.
Por ela me enterneço.
E simplesmente entristeço...
  
Ah, essas palavras...
E com elas faço versos.
Pequenos, quase sempre amenos,
apenas para simples deleite
de minha alma que chora
e ignora, o que elas têm para dizer...
________________________________
Publicado nos Anais da XV Jornada Médico-literária Paulista e
X Jornada Nacional da Sobrames - Rumo Editorial - SP - 2019

10.8.19

Um velho arquivo de Word chamado saudade



(para ela, em agosto de 1999)
Já é agosto e muito ou quase nada aconteceu. Escrevi alguns poemas e passei a usar óculos. Assisti à televisão e fui almoçar fora algumas vezes. Ouvi uma música antiga, que há tempos não tocava. Aproveitei o último sábado para engraxar meus sapatos. Recebi telefonemas e publiquei uma crônica no jornal. Soube que uma ex-namorada se casou pela terceira vez. Comprei uma estante nova para o meu computador. Fui premiado num concurso de contos do qual nem me lembrava. Fiquei com saudades dela. Escrevi um e-mail, pois as férias já se acabaram. Espero que ela já esteja de volta e me escreva, pois já é agosto, e muito ou quase nada aconteceu. Daqui a pouco será setembro de ficar mais velho. Ah... Mas isso acontece a toda hora e nem valeria a pena ter citado. Eu é que resolvi escrever meia dúzia de palavras, pois me deu saudades dela, que está fora há mais de mês. Será que ela está bem e vai voltar?

(para ela de novo, em outubro de 2000)
Já se passou outro agosto e quase tudo continua igual. Escrevi alguma coisa aqui e acolá. Deixei de almoçar fora e me acostumei com o trivial. Desisti de ver televisão, pois tudo se repete, cansativamente. Ainda ouço música antiga, pois não comprei mais nenhum CD. Não engraxei mais os sapatos, pois resolvi que isso é uma tremenda bobagem. Quase sempre peço para dizer que não estou quando me chamam ao telefone. Só quero estar sem falar com alguém de vez em quando. Aprendi a cultuar o silêncio, outra mania besta... Só não deixei de publicar crônicas, pois isto é mais que um vício: é obrigação. A notícia daquela ex-namorada que casou pela terceira vez não me fez mal nenhum. Tanto é que estou vivo. Mas fiquei intrigado, tentando saber como é que aquela danada conseguiu se livrar de mim muito antes de seu segundo divórcio. Eu era apaixonado por aquela porcaria de menina... Minha estante nova do computador perdeu a garantia justamente um dia depois de ficar bamba. 

(para a saudade, em abril de 2002)
Senhora saudade, você é uma idiota! Fez-me perder um tempo danado na frente da tela de meu computador, escrevendo cartas, fazendo versos, pensando na palavra seguinte. E não se abalou por nada, em nenhum momento. Todas as coisas que eu pensei que fariam sentido, não fizeram. Senhora dona saudade, nunca vi ninguém tão insensível quanto você, valha-me Deus!

(para mim mesmo, em junho de 2003)
Se isto fosse um diário, seria uma verdadeira aberração. Primeiro por não guardar qualquer coerência entre uma anotação e outra, a não ser certa nostalgia e um gosto amargo em cada letra. E depois, por não conter exatamente o que deveria. A grande aberração é sempre essa: a verdade que se emaranha na alma, se confunde com ela e não transparece mais, de jeito nenhum.

(para quem quer que seja, em outubro de 2003)
Abri novamente esta porcaria de arquivo por acaso. Procurava outros escritos e me deparei com estas anotações, que nem são lá essas coisas. Só dor de cabeça e desânimo... Mas já que estou por aqui, e só para retomar o curso desta pouca história, informo que recebi um e-mail dela, dia desses, anunciando a publicação de um livro. Vai ver foi por isso que andou sumida esse tempo todo. Pena que não serve mais para se compartilhar como naqueles tempos em que nos conhecemos numa lista de mensagens na internet. Alguma coisa mudou sua cabeça. Tanto que ela se tornou cega e muito diferente do que quando a conheci. Naquele tempo havia mais doçura em suas palavras.

(para mim mesmo, em março de 2004)
Tomei consciência do limbo nosso de cada dia, onde chafurdamos todos, pois não há escapatória neste rumo pouco plausível que definimos para nós mesmos. Os hipócritas a cada dia se esmeram mais, os falsos estão cada vez pior, os insolentes cada dia mais atrevidos, os pobres cada dia mais rotos, os indecentes cada dia mais indecentes, os criminosos cada dia mais ousados e os declaradamente podres cada dia fedem ainda mais... Enfim, é quase tudo igual ao antes, com o agravante de ser tudo um pouco pior.  Uma mesmice que nunca termina e um mentir que não se acaba; uma falsidade que não tem fim e um martírio eterno.  Ah... Só para constar: nunca mais ouvi falar dela, pois me ausentei de quase tudo que era virtual. Quase tudo. Restam alguns poucos sobreviventes, dos quais passarei a exigir alguma reciprocidade. Sem qualquer resquício dos enganos virtuais, percebi que meus sapatos são os mesmos de 1999, só que muito mais puídos e gastos. O preto já se parece mais com um jacaré. Lembrei de repente de alguém que me disse: Eita vidinha besta!

(para todos e especialmente para a saudade, em maio de 2019).
... Olha só cada coisa mais esquisita nós pensamos e escrevemos. Por isso que é legal ir guardando estas bobagens todas, estes arquivos inúteis, sem qualquer outro objetivo senão o da prevenção para que nada disso volte a acontecer... Mas o pior é que acontece... Já não tenho tanta certeza se um dia não voltarei a abrir este arquivo.
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Publicado nos Anais da XV Jornada Médico-literária Paulista 
e X Jornada Nacional da Sobrames - Rumo Editorial - SP - 2019  


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