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19.10.08

Dois meninos numa tarde de sábado
























Na fila da montanha russa o menino de cabelos penteados aguarda ansioso a sua vez de entrar no carrinho que o levará a rodopiar e girar perigosamente sobre os trilhos. Os mágicos e desafiadores trilhos da montanha russa.

Olha deslumbrado outras crianças e jovens que já estão se divertindo no brinquedo. Eles gritam. O carrinho zune veloz, e ganha o primeiro looping. Sobe até o ponto mais alto dos trilhos. Precipita-se. O menino de cabelos penteados pensa se sentirá medo quando for a sua vez.

Contando as pessoas à sua frente, ele imagina que irá no segundo vagão da pequena composição. Gostaria de ir no primeiro vagão, no primeiro banco. Seria muito mais emocionante. Talvez sinta mais medo. Por isso desiste da idéia de propor uma troca de lugar.

Depois de alguns minutos, que parecem uma eternidade, os carrinhos param na pequena plataforma. Os que terminavam o percurso desembarcam. Rapidamente os carrinhos são ocupados outra vez. A pequena composição começa a deslizar, vagarosamente.

No último banco do segundo carrinho, ao lado de uma adolescente que sorri, o menino de cabelos penteados se senta. E sobe. Chega ao topo. Desliza. Grita. Fecha os olhos. Tem medo. Se emociona. Fica de cabeça para baixo no looping. Voa. Grita novamente. Seu coração acelera.

Tão demorada a espera. Tão rápido o passeio. O menino de cabelos penteados desembarca. Voltou do parque sem fome. Comeu hamburguer e batata frita na lanchonete antes de chegar em casa. Está cansado. Toma um banho e acaba dormindo no sofá, vendo televisão.

O menino de mãos sujas enxuga o suor da testa. O sol arde no céu sem nuvens. As folhas do canavial encobrem a visão do horizonte e bamboleiam ao sabor da brisa fraca e quente. O menino ergue o facão, e desfere golpe certeiro. O talo de cana tomba. Afiado facão. Perigoso facão.

Outros meninos e meninas, ao lado de adultos silenciosos, repetem o mesmo gesto. Seguidamente. Mecanicamente. O facão subindo, descendo, subindo, descendo... A cana enegrecida pela queimada vai ficando pelo chão. Há muita cana ainda em pé para ser cortada.

As mãos do menino de mãos sujas são negras da fuligem da cana. Negras e esfoladas. E mesmo assim sustentam o facão, que sobe e desce, vigorosamente. E mesmo assim ajeitam a cana que tomba a seus pés. Ele não pensa nos outros que trabalham à sua volta. Pensa nos seus braços cansados e em suas mãos esfoladas.

Tão longo um dia no canavial. Tão distante a noite. O menino de mãos sujas não sabe o que é emoção. Nem medo. Só sabe que deve ter forças para fazer o facão subir e descer, subir e descer, até que o sol se esconda.

Demora, mas o sol se põe. O menino de mãos sujas volta do canavial sem fome. Comeu o que havia em sua marmita durante o dia. Está cansado. Deita-se cedo. Domingo não é preciso trabalhar. Só ajudar o pai no roçado de mandioca.

É fácil compreender duas histórias tão parecidas. Dois meninos, da mesma idade, talvez. Pouca diferença no tamanho, mas isso não tem grande importância. Ambos vão crescer com o tempo. Todo mundo cresce com o tempo. Serão adolescentes. Ganharão barba e bigode quando já forem quase adultos.

Ambos são crianças. Como toda criança, eles sonham. Pensam no futuro, idealizam. Estão aprendendo a entender a vida. Suas atitudes quase sempre se revestem da inocência das crianças. Os olhos desses dois meninos são iguais, na cor e no brilho. Os cabelos, nem tanto, mas isso também não importa muito. Há muito menino despenteado e de mãos sujas nas filas dos parques de diversão.


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Publicado na "I Antologia Paulista" da Sobrames-SP
Legnar Inormática & Editora (São Paulo - 1999)
Publicado no livro "O Encantador de Passarinhos e outras históriaas)
Rumo Editorial - São Paulo - 2011
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