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19.10.08

Probabilidades

















Ele esperava com paciência e resignação pelo grandia dia, pois tinha certeza que acabaria acertando. Trazia decorados os números que o fariam abandonar definitivamente o macacão respingado da tinta das muitas casas que já pintara na vida. Costumava pensar sua vida mudando, como mudavam as cores sob o rolo de tinta. Tudo seria novo, limpo e luminoso. Nas paredes tornava palpáveis as visões do novo tempo.

Religiosamente às quintas-feiras à tarde apostava um real e colocava no bolso do macacão seu passaporte para a felicidade. Invariavelmente às segundas-feiras quedava-se por cinco minutos olhando a tabuleta com os números diferentes dos seus. Então voltava para suas paredes, onde se deliciava com a projeção de seu futuro, como numa película.

Até que numa segunda-feira de chuva, aconteceu. Ele nunca suspeitara, em todos esses anos, que poderia estar chovendo no primeiro dia de seu novo tempo. Por isso não lhe ocorreu nenhum pressentimento diferente. Apenas a ansiedade de sempre, talvez um pouco mais acentuada pelo valor do prêmio, que há algumas semanas de acumulava. Tirou do bolso seu bilhete, e nesse dia demorou mais tempo olhando a tabuleta. Custou a assimilar aquela imensa coincidência, aquela total e inacreditável coincidência. Seus olhos pararam no vazio. Seu pensamento no nada absoluto. Com o bilhete na mão saiu para a calçada. Não sentiu a chuva encharcar seus ombros. Caminhou. Passos trôpegos. Na esquina, o olhar perdido no vazio dos primeiros instantes de seu novo tempo. A enxurrada. Uma freada brusca. Um corpo jogado a distância. Inerte. O sonho num pedaço de papel sendo tragado pelo bueiro.

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Publicado em "Trilogia Paciente"
Casa do Novo Autor Editora São Paulo (2000)
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