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18.10.08

Ramalhetes





















Não era desse jeito que eu queria terminar esta história, mas vai terminar assim mesmo, que não me vem na cabeça final mais sensato para o que aconteceu. Pois se foi mesmo assim que eu descobri como é que Dolores fazia para estar sempre em evidência, então inventar outro final é que eu não vou. Pois assim, conto só o que se deu naqueles dias em que Dolores recebia rosas. Dia sim, dia não, chegava um buquê, que Dolores recebia meio sem jeito, com o rosto avermelhando, quase da cor do maço viçoso. Quem mandou, quem é que deu, as perguntas se repetiam e Dolores só fazia ficar mais vermelha e acabrunhada, olhando o pessoal com o rabo do olho. Nem cartão nem nada. Nem etiqueta que indicasse floricultura ou procedência. Depois ficava olhando o maço de rosas, certificando de quando em quando a reação dos colegas de setor.

E logo vinha uma insinuação, de um canto da grande sala, dizendo ter sido aquele um, que vivia ligando para Dolores durante o expediente. Que nada, deve ter sido fulano de tal, que faz tempo tá de olho na Dolores, dizia uma outra voz, quase sibilando um segredo. E enquanto o inusitado ramalhete jazia sobre a mesa, como a enfeitar uma lápide incógnita, Dolores guardava enigmático sorriso nos lábios, desfrutando seus holofotes. Só mudava de feição ao apanhar o telefone e dizer um oi muito afetado, como quem já esperasse a ligação. E então, tenho certeza, ela sabia que todos os ouvidos perscrutavam seu interminável colóquio, feito em surdina. Um noivo, julgavam os incautos que imaginavam Dolores prenhe de amores e seriamente comprometida. O marido, pensavam os que não a sabiam separada. Um pretendente anônimo, pensavam os que não viam nela os parcos dotes com os quais a natureza a presenteara.

Os ramalhetes continuavam chegando, dia sim dia não. Não faltava também nem um dia sequer dessa expectativa e desse mistério lá na repartição. Até que teve um dia... Sempre tem um dia, em qualquer história, e nesta não poderia faltar o tal dia. Pois assim foi. Teve um dia, fim de expediente, em que o Sombrio, boy do departamento, e isso foi ele próprio que me contou, bateu o ponto logo depois de Dolores, que saía abraçada com seu eterno ramalhete. Té amanhã, té amanhã, e por um mero acaso, Sombrio tomou o mesmo rumo que Dolores, uns dez metros atrás. Dolores não viu, Sombrio não estava nem aí, mas de repente notou que lá adiante ia Dolores, com seu maço de rosas vermelhas. Já ia apressando o passo para alcançar a moça quando viu coisa que o deixou assombrado. Dolores olhou para um lado e depois para o outro e, rapidamente, como quem se desfaz de um estorvo, atirou o lindo maço de rosas num cesto de lixo da prefeitura.

Bastou. O moleque ficou intrigado, mesmo porque volta e meia arriscava meter os olhos de cobiça nas pernas de Dolores, sabe como é moleque, né? E também ele andava intrigado com tanta flor que ela recebia. Não que achasse Dolores lá essas coisas, mas ela tinha umas pernas... No dia seguinte, Sombrio resolveu botar o mistério a limpo e decidiu seguir Dolores na hora do almoço. Viu quando ela sentou-se sozinha no restaurante de quilo da esquina, e também viu quando ela saiu, ainda só. Ah, não! Pode deixar que eu descubro! E não pode deixar de ver Dolores admirando langerie na vitrine da loja no outro quarteirão, o que só fez crescer sua excitação pela aventura. Pensou coisas de Dolores e deixou-se excitar, sabe como é moleque, né? Então viu que ela entrou na floricultura e saiu dela tão rapidamente que nem deu tempo de pensar em sua próxima ação de detetive improvisado. Correu meio esbaforido e atravessou a avenida, com medo de ser visto. Deixou o resto da investigação para o dia seguinte. Mas que eu descubro, eu descubro!

Não deu outra. Logo na manhã chegaram as rosas e Dolores repetiu seu ritual de surpresa e admiração, com aquela cara de sonsa que deus me livre, mas que Sombrio adorava, principalmente se ela estava metida naquela saia curta... Ai, que pernas! E o povo do departamento desandou novamente a pensar e a insinuar coisas, sabe também como é que é o povo, não é?. Dolores falou em surdina ao telefone, como sempre. Todo mundo com o ouvido pregado e só Sombrio não estava convencido de nada mais daquela cena corriqueira. Nem pensava mais que Dolores poderia ser uma...

Na hora do almoço, antes mesmo de ir para o refeitório, o moleque foi até a floricultura, não agüentando mais a excitação a consumir-lhe a alma, e o desejo de descobrir se Dolores era... Ai, aquelas pernas... Já não agüentava mais de ansiedade e quase não creditou quando a japonesa confirmou que a moça era freguesa antiga. Comprava rosas e mandava entregar sempre no mesmo endereço. E fazia questão de que não colocassem a etiqueta da floricultura, nem cartão, nem nada.

Foi o próprio Sombrio que me contou essas coisas que ele descobriu, e por isso mesmo é que eu não mudo o final da história, que acho até que nem aconteceu direito ainda. Deixa chegar mais flores, que qualquer dia eu conto... Agora eu é que ando investigando o Sombrio, que não tira mais os olhos das pernas de Dolores.


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Publicado nos Anais do XXI Congresso Brasileiro de Médicos Escritores, pg.175
Junho de 2008 - Fortaleza - CE
Primeiro lugar no concurso de contos, Troféu "Renato Passos"
Publicado no livro "O Encantador de Passarinhos" - AGBOOK, 2011 - São Paulo 
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