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19.10.08

Trilogia Paciente





















I - Asilo
Acontecia nas noites sem lua e céu aberto, quando as estrelas eram muitas e pareciam brilhar mais. Sentavam-se os dois na varanda e de lá espiavam a escuridão. Calados, ouviam atentamente a noite, apenas murmurada entre a folhagem indevassável. Cada qual trancado em seus pensamentos, as mãos unidas com suavidade, apenas repousadas sobre o colo. Aguardavam com paciência o tempo se escoar, marcado pelo ritmo seco do relógio da sala. Espiavam o céu com olhos miúdos por detrás das lentes, e contavam os pontos luminosos que faiscavam.
Não diziam nada, pois não precisavam de palavras. Vez por outra um longo suspiro entrecortado revelava uma distante recordação. Nesses momentos voltavam os olhos um para o outro e sorriam ligeiramente cúmplices. E logo fitavam novamente a noite, que preenchia tudo. As pálpebras cansadas teimavam. Placidamente voltavam a se abrir, e nesses momentos era um tremor brando que conduzia os olhos de um aos do outro, ternos. Quanto tempo mais? Um ponto luminoso riscava o negrume do céu e desaparecia. Eles se recolhiam quando o silêncio da noite era preenchido por nove pancadas mais audíveis do relógio da sala.

II - Agonia

Alguns minutos mais e ela chegaria, silenciosa. Viria com sua calma rotineira, e se apossaria do quarto. E nada mudaria. Nem um só minuto passaria de forma diferente, sem a lentidão costumeira de vários meses. Uma réstia de sol percorreria a mesma trajetória na parede, até que viesse a penumbra. E então a noite se instalaria. Ela entraria, silenciosa, um prato de sopa numa bandeja. Acenderia a luz fraca e se sentaria na banqueta ao lado da cama. Paciente, aguardaria que a boca trêmula e insegura rejeitasse a última colherada.
Faltaria o banho. Mais um lento ritual. Ela agiria com naturalidade incompreensível. Suas mãos estariam firmes e certas dos caminhos a percorrer. Nenhum desses caminhos mudaria. E depois novamente o leito. Eternamente igual e desbotado, qual seus olhos. Depois ela sairia lânguida e o deixaria a sós com a pegajosa escuridão. Infinita noite, que ainda assim talvez terminasse. E haveria uma insuportável expectativa de que viriam muitos outros minutos de um outro dia. E ele não seria novo. Apenas seria, até que a última réstia de sol caminhasse.


III - UTI
Nada. E aí disseram pra ela que ficasse quieta, senão poderia morrer. E ela pensou que todos morreriam um dia, mas também pensou que não queria que a sua morte fosse assim tão agora, numa hora dessas. Mas logo ficou quieta e somente pensou. Mas foi muito rápido que ela pensou nisso, porque em seguida já estava pensando noutra coisa. E nem ela mesma sabia no que estava pensando quando outro pensamento lhe veio à cabeça, e logo veio outro e mais outro, e assim todos os seus pensamentos foram acontecendo sem que ela pudesse se dar conta sobre o que pensava. Mas sabia que estava pensando. Nada.
Então veio um homem vestido de azul desbotado com uma cicatriz no rosto e ela pensou num homem que já vira um dia, igualzinho a ele na cicatriz e na roupa desbotando. E que não sorria. Sua boca não estava lá. Pensou onde estaria a boca do homem que já conhecia, e que não tinha boca para sorrir. Ela pensou que conhecia o homem de roupas iguais àquela pois já tinha visto aquela falta de boca sem sorrir em algum lugar, mas não ficou muito tempo pensando nisso, pois o homem de azul sem cor e sem boca já não estava lá. Nada. Só um grande sol ofuscando seus olhos, que não ardiam. Não estava mais onde pensava estar. Pensava numa distância imensurável e ao mesmo tempo na proximidade das coisas à sua volta. Já não lhe diziam nada. Nada. E não era silêncio, ela sabia. Eram ruídos, músicas e vozes cacofônicas. E eram ao mesmo tempo nada, além da luz do sol que ofuscava. Nada. Já nem sabia se era, se estava ou levitava. Nada. Nem mais a luz do sol que ofuscava. Nem mesmo o homem desbotado e sem boca. Escuro. Nem mais os sons e ruídos daquele nada. Nem mais...


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Publicado em "Trilogia Paciente" - Casa do Novo Autor Editora (São Paulo - 2000)
Publicado na Antologia "Grandes Escritores da Casa do Novo Autor" - idem
Primeiro lugar no I Grande Concurso Nacional de Literatura da Casa do Novo Autor - 1999
Apresentado na V Jornada Médico-Literária Paulista em Águas de São Pedro - SP (1999)
Publicado nos Anais da V Jornada Médico-Literária Paulista - Legnar Informática e Editora

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