Encontre o que quer ver

19.10.08

Vida Torta














Há um cruzamento no meu trajeto diário a caminho do trabalho, onde invariavelmente sou obrigado a parar no semáforo. E como na maioria deles nas grandes cidades, logo se espera que alguém se aproxime da janela do carro, pedindo ou vendendo. Às vezes assaltando, mas isso é um pouco menos rotineiro. Nessa esquina onde tenho que parar todo santo dia, não é tão é diferente. De dois anos para cá, reparei que há sempre uma única e mesma pessoa parada. É um senhor, negro, idade incerta, muito mal revelada por fiapos brancos na carapinha. Roupas razoavelmente limpas. A mão esquerda, retorcida para dentro e quase fechada, sempre rente ao corpo, na altura da cintura. Com a direita, ele acena para os ocupantes de todo veículo que pára naquele semáforo, e abre um largo sorriso. Alguns retribuem o aceno.Lembro-me dele ter se aproximado uma única vez da janela do meu carro. Foi no dia 31 de dezembro do ano passado, e eu estava a caminho da Rodovia Anchieta, para o reveillon na praia. Apesar de nunca tê-lo visto fazer isso antes, logo pensei: vai pedir. Baixei o vidro e apanhei algumas moedas. Então eu o vi caminhando, pela primeira vez. Arrastou a perna esquerda e manquitolando aproximou-se do carro. Estendi a mão para que ele pegasse as moedas. Ele inclinou-se um pouco, abriu aquele sorriso que eu já conhecia. Olhou para todos dentro do carro e com extrema dificuldade falou: "Feliz Ano Novo." Sequer reparou nas moedas, e abanou a mão direita quando o carro arrancou. A viagem naquele dia foi imensamente demorada. O tempo todo eu fui pensando no homem daquela esquina.

_______________________________________

Publicado em "Trilogia Paciente"
Casa do Novo Autor Editora - São Paulo  - 2000
____________________________________________


Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...