Encontre o que quer ver

26.12.08

A lanterna do zelador






















Que dia mais terrível! Quinzinho não era muito de acreditar em horóscopo, mas naquela quarta-feira, depois de tudo o que aconteceu, acabou dando o braço a torcer para os astros. Es¬tampado no jornal, o prognóstico para Capricórnio não era nada animador. "Pequenos contratempos no ambiente profissional. Cuidado com a alimentação neste dia. Neutro nas finanças. Possíveis desenten¬dimentos no campo amoroso".

Deveria ter lido e acreditado. Assim evitaria um monte de coisas. Contratempos no ambiente profissional não faltaram. Chefe de mal humor, dando bronca a torto e a direito, implicando com tudo. Feijoada indigesta no restaurante a kilo da esquina. Muito sal. Conta negativa no banco. Epa! Cadê a neutralidade nas finanças que o astrólogo garantiu? Desde quando ficar no vermelho é neutralidade?

E para completar, a ligação da mulher no meio da tarde, em férias na praia com as crianças. "Aqui está um sol maravilhoso, Quim... Por que você não pede uma licença e vem pra cá? As crianças estão se divertindo tanto!...Blá, blá, blá..." Quinzinho ouviu, ouviu, ouviu... A mulher acabou pedindo mais dinheiro, e Quinzinho fez valer o último prognóstico para Capricórnio naquele dia. Disse "tá pensando que eu sou burro de carga?" e desligou.

E se não bastassem todas as contrariedades do dia inteiro, ainda sobrou trabalho para levar para casa. "Pra que mais? Besteira. Para um único dia, está bom demais", pensou Quinzinho no meio do congestionamento da Marginal do Tietê, no rumo de casa.

O trânsito parado irritava Quinzinho, que fumava um cigarro atrás do outro, e atirava as bitucas pela janela do carro. Para piorar o rádio anunciou: "em Brasília, dezenove horas". Cleck! Num gesto brusco torceu o botão do rádio, para ouvir somente o ronco dos caminhões, ocupando todas as pistas da Marginal, e as buzinas dos motoristas dos outros carros, que tentavam inutilmente abrir caminho.

Alí pelas oito e tantos, suando e cansado, estacionou o carro na garagem do prédio. Pegou sua maleta, seu paletó, bateu a porta e girou a chave. Caminhou dois ou três passos em direção ao elevador. Olhava distraidamente para o chão, pensando no trabalho ainda por fazer, quando a escuridão tomou conta de tudo. Falta de energia. Black-out.

Quinzinho parou onde estava, tomado por ligeiro susto ante a escuridão inesperada. "Quem disse que não faltava mais nada?" Automaticamente buscou o isqueiro no bolso da calça e riscou-o uma ou duas vezes. Rumou em direção às escadas. Nove andares.

No quinto andar Quinzinho pensou em sentar-se alí mesmo nos degraus e esperar. No sexto tropeçou num degrau e gritou um palavrão. No sétimo topou com o zelador que descia com uma lanterna. Luz, finalmente! Pensou em pedir a lanterna emprestada, mas desistiu. Tampouco o zelador ofereceu ajuda. No oitavo parou para tomar fôlego e no silencioso negrume do corredor aguçou os ouvidos: havia uma discussão qualquer num dos apartamentos do oitavo. No nono andar, pensou que fosse sucumbir, mas a porta de seu apartamento, vista sob a tênue luz do isqueiro, lhe deu o último impulso de coragem.

Ao abrir a porta, deixou cair a maleta e o paletó. Parou por alguns instantes, a porta escancarada, a gravata torta no pescoço, o olhar perdido na escuridão do apartamento vazio. Velas. Precisava de velas. No escuro, tateando as paredes, caminhou em direção à cozinha. Bateu a coxa numa cadeira. Outro palavrão.

Abriu gavetas, vasculhou, tateou. Abriu as portas dos armários. Nada de velas. "Onde será que se guardam as velas nesta casa?" Abriu a geladeira, tateou seu escuro e frio interior e pegou uma lata de cerveja. Pensou em ficar no escuro mesmo. Bateu a porta da geladeira e dirigiu-se à sala. Bateu a canela na mesa de centro. Outro palavrão.

Quinzinho estava confuso, cansado, com fome, sem enxergar nada, com a canela doendo. Abaixou-se vagarosamente, tateando para não bater em mais nada, e buscou lugar seguro para sua lata de cerveja. Ajoelhado, bateu a mão nos bolsos à procura do isqueiro. Onde ficou o isqueiro? Olhou em direção à porta, ainda escancarada. Engatinhou em direção a ela, e tropeçou na maleta e no paletó, jogados no chão. Tateou em busca do isqueiro. Nada. Bateu a porta, e ouviu o tilintar do chaveiro que ficara do lado de fora, enfiado na fechadura. Outro palavrão.

Ergueu-se até alcançar a maçaneta e girou-a, abrindo novamente a porta. Cadê o chaveiro? Com o impacto da batida da porta, o chaveiro foi parar no meio do corredor. Escorando a mão na parede, sem ver absolutamente nada, Quinzinho começou a tatear o chão com o pé direito, em busca do chaveiro. A princípio lentamente. Depois arrastando o pé com raiva e bem mais depressa. Em dado momento ouviu o barulho do chaveiro, recém chutado, que rolou alguns degraus escada abaixo.

Quinzinho escorregou lentamente as costas pela parede, até sentar-se no chão. A lata de cerveja ficara em algum canto da sala escura, completamente inatingível. O isqueiro, teve paradeiro ignorado, repentinamente. O chaveiro rolou, sabe-se lá quantos degraus abaixo, em meio à escuridão. A fome e o cansaço criaram corpo e alma. Quinzinho ficou prostrado no corredor, pensando em nunca mais levantar-se dalí.

Cinco minutos? Vinte? Uma hora? Quinzinho perdeu completamente a noção do tempo e do espaço. Acabou adormecendo, patéticamente sentado no corredor, gravata afrouxada no pescoço. Foi acordado pelo zelador algum tempo depois. Aos poucos se deu conta de onde estava. Recordava-se vagamente de algumas coisas que aconteceram antes de adormecer, mas não sabia exatamente como e porque acabara naquela situação.

O zelador ficou esperando por alguns instantes até Quinzinho voltar à realidade, e depois lhe entregou o molho de chaves. “Aconteceu alguma coisa, seu Joaquim?” Quinzinho olhou para o rosto do zelador, que parecia apreensivo. Olhou à sua volta, e só então percebeu que as luzes do corredor estavam acesas. Na mão do zelador, a lanterna. O black-out terminara a poucos instantes. O zelador percorria os andares para ver se estava tudo em ordem.

Antes de entrar em seu apartamento, cuja porta permanecera aberta, Quinzinho voltou-se para o zelador, olhou a lanterna em sua mão e perguntou: “Por acaso o senhor não é de capricórnio, é? Ainda sem entender direito, o zelador respondeu que era de touro. “Ah, é?... Então, sabe o que o senhor faz com essa lanterna?...”

___________________________________________________________________

Publicado nos anais do "XVII Congresso Nacional da Sobrames" 
Legnar Editora - São Paulo - 1998
___________________________________________________________________

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...