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17.12.08

Novo Dia


















... Portanto, quando o novo dia amanhecer, faça assim: trate-o com certo desdém, como se ele fosse a coisa mais comum e sem muita importância que você já viu acontecer. Porém, não o despreze de todo, que é para que ele não se sinta no direito de ficar sombrio. Aliás, desprezo não se deve dar a ninguém, não é mesmo? Portanto, finja que esse amanhecer não é com você e boceje longamente, olhando para algum canto qualquer do dia e sempre disfarçando da melhor forma possível.

Mas valorize como puder o dia que se insinua. Não mire direto nos olhos do novo dia, pois senão ele pode te encantar. Faça de conta que ele nem está por perto e siga dissimulando. Faça seu próprio amanhecer, sem qualquer demonstração de intimidade ou afinidade com o dia que se sugere.

Deixe-o espreguiçar livremente sua luz pelo horizonte e não dê muita atenção a sua possível demonstração de prepotência. Às vezes os dias são assim mesmo, cheios de si e de luz e tanta coisa, que chega a encantar um vivente. Isso costuma confundir muito as pessoas menos avisadas, pois elas acham que todos os dias são maravilhosos por si mesmos, cheios de encantamento. Mas não é bem assim. Portanto, muito cuidado para não se deixar trair pela cara do dia logo no seu começo, quando você ainda não está preparado adequadamente para enfrentá-lo e nem sequer despertou direito. E, de mais a mais, os dias são assim mesmo, cheios de quereres, fazeres e mequetrefes, e portanto, são muito, muito perigosos. Cuidado!

Ah!, outra coisa: se por acaso algum perfume matinal, como por exemplo, o de mel, o de certas flores silvestres ou o de campinas distantes, que são os mais atrevidos, tentarem penetrar em suas narinas, faça de conta que você teve uma terrível noite de rinite alérgica. Afirme que você não está percebendo nenhum impulso olfativo na manhã desse novo dia. Mas não seja tão imprudente a ponto de ignorar qualquer desses aromas, por mais de alguns segundos, pois eles são tão raros quanto insinuantes e imprescindíveis. E serão tão importantes neste seu dia, como se você os sentisse pela primeira vez. Portanto, aspire-os com suave deleite, mas não se dê por satisfeito ainda, se por acaso o dia vier perguntar alguma coisa a respeito.

A seguir, e para que o dia não pense que é assim tão magnífico quanto aparenta, tente não ouvir nenhum chilreio de pardais, pios de caga-cebos ou gorgeios de pássaros que você nem conhece. Simplesmente ignore o lamúrio de um ou outro sabiá, principalmente se for setembro. Feche seus ouvidos para os sabiás, caso seja primavera. Sabiás gostam de se impor com insistência, muito antes da luz do dia e dos aromas de flores e das campinas que podem chegar com a luz do sol. Sabiás podem ser mais tristes do que se imagina, pois gorjeiam e piam ali por volta de setembro, quando a primavera chega ou apenas se insinua. E é este, mais ou menos, o tempo em que a morte se prenuncia. Todos os sabiás gostam de estar por ali nessa época, muito antes da luz do sol, dos pios dos outros pássaros, dos aromas de todas as flores e da luz das cores do dia. Mas chegarão infalíveis, sempre perto do tempo em que algumas tristezas teimam em aparecer também.

Mas não dê tanta importância para essas coisas, caso você seja de acordar tarde. Afinal, o dia já vai estar ali para todo mundo, seja lá a que horas você se der conta dele. Em algum momento ele já clareou, os pássaros do dia já cantaram, as cores e as luzes do dia já se impuseram e tudo o mais das coisas do dia já aconteceram. Então, já não há mais nada a fazer. O dia já está acontecendo e assim prosseguirá em sua plenitude, como ele bem entender, quer você queira ou não. Então, faça somente assim: aspire. Expire. Aspire. Expire. Aspire... Expire... E esqueça, definitivamente, que os sabiás do início da primavera são precursores da morte. Eles não têm culpa das trapaças que a morte faz com algumas pessoas na primavera.

18.10.2005 a 25.08.2007

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Apresentado na "IX Jornada Médico-Literária Paulista" da Sobrames-SP
Realizada de 27 a 30 de setembro de 2007
Hotel Intercity - Jundiaí - São Paulo
Publicada nos Anais da "IX Jornada Médico-Literária Paulista"
Rumo Editorial - São Paulo - 2007

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