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17.12.08

Uma fogueira




















Numa noite fria de antigamente, bem lá no meu tempo de molequinho recém-saído dos cueiros, garoava. Eu me escondia debaixo dum gorro de lã bem grosso pra ficar na rua depois de certa hora, pois senão era resfriado na certa. Era até esquisito como as coisas aconteciam com simplicidade naquele tempo. Não havia iluminação pública, as ruas não eram calçadas, faziam-se fogueiras em frente às casas, principalmente quando chegavam as festas dos santos de junho. Aí sim, era fogueira pra todo lado e muita, muita garoa mesmo...

Lembro de certa noite em que, talvez por mera distração e liberalidade dos adultos, que se preocupavam muito mais com um homem negro que havia sido encontrado morto naquela manhã de junho, numa rua próxima, do que com os próprios filhos, nós ficamos até bem mais tarde na rua. Houve uma fogueira muito especial naquela noite, pois todos se reuniram em frente ao armazém do seu Ernesto para comentar a morte do Lamparina - era esse o apelido do defunto. Acho que foi uma das mais intensas garoas que já apreciei e senti em toda minha vida.

Meu gorro de lã grossa já não dava conta, pois se encharcou de tanta garoa. E haja pau pra queimar naquele fogaréu que fizemos em frente ao armazém do seu Ernesto! Os mais velhos se entretiam com suas conversas sobre a morte de Lamparina. E nós, ó, lenha na fogueira! E quem é que dava um tiquinho de atenção pra garoa que tecia sua cortina espessa, quase palpável, mas que só se via dependendo do ângulo em que se estivesse entre a luz da fogueira volumosa e a lâmpada imprecisa da frente do armazém do seu Ernesto? Quem? Ninguém...

Acho que foi nessa noite misteriosa e garoenta da morte do Lamparina, na qual ninguém soube dizer ao certo como ele morreu, que a garoa de São Paulo foi deixando de existir. Houve quem dissesse que Lamparina morreu foi de bebedeira, mas alguns entendedores presentes na roda de discussões daquela noite - e eu só soube disso muito tempo depois - diziam que bebedeira não mata ninguém. Atestavam que o que mata mesmo é o estrago que a cachaça faz no fígado dum sujeito, no coração dele e até na sua cabeça... Mas isso com o tempo... Não duma vez. Naquela ocasião eu não tinha nem como dar palpite, pois fiquei o tempo todo catando pedaços de madeira pra acirrar o fogo da nossa fogueira que, a meu ver, ajudava a espantar a garoa que insistia, insistia, insistia... Eu lá queria saber de Lamparina e suas bebedeiras?

Mas já foi o tempo. Hoje não tem mais garoa em São Paulo, assim como cachorro não se amarra mais com lingüiça e palavra não se honra mais com fio do bigode. Pode? È claro que sim! Hoje em dia quase tudo pode. Só não pode mais é fazer fogueira na rua, pois ninguém mais se reúne pra falar da morte inexplicável ou brutal de alguém, coisa tão corriqueira pra se perder tempo com ela. Ninguém mais fica até tarde da noite na rua, de gorro de lã na cabeça, apanhando um resfriado. A menos que queira ser assaltado.

Tem coisa que é assim mesmo. Acaba e você não sabe nem porque. Como a garoa de São Paulo, que começou a ir embora depois daquela noite da morte do Lamparina. Mas para outras coisas que estão mudando naturalmente ou que querem nos impor, a gente pode dar um jeito bem assim, ó: ZAP!

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Publicado na coletânea "A Pizza Literária - nona fornada"
Rumo Editorial - São Paulo - 2006

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