Encontre o que quer ver

17.1.09

Um vôo a mais





















Naquele tempo, muitas mulheres flutuaram...Boa parte fazendo algumas incursões pelos ares, o que era uma novidade absoluta. A grande maioria delas, no entanto, era motivo de pilhéria entre os homens, pois estes julgavam tudo aquilo uma grande besteira. Elas simplesmente camboteavam e zuncavam suas asas para lá e para cá, davam algumas voltas sonsas, e depois se espatifavam no chão, de forma grotesca. Coisa típica!

Contudo, a maioria das mulheres não fazia apenas piruetas à toa, pois tinha um percurso a seguir. As mulheres sabiam muito bem o que queriam e onde queriam chegar. Por isso ninguém quis interferir. Ou pelo menos ninguém pode interferir naquele momento. Afinal nenhum deles entendia nada de flutuação de mulheres. Era um segredo só delas. Só elas sabiam - e já sabiam há muito tempo - se já tinham ou não atingido um bom nível de flutuação. Ou não?

O que se ouviu dizer é que ninguém quis interferir. Elas, e somente elas, sabiam do quê precisavam e onde queriam chegar. E os homens estavam todos ali, boquiabertos, vendo suas mulheres atingirem o céu, alçando vôo para limites que eles nunca puderam imaginar. Elas estavam sobre suas cabeças. Todas elas! De uma maneira que nunca estiveram antes. A hora havia chegado e os homens não poderiam fazer mais nada. Somente olhar suas mulheres flutuando, longe e alto, cada qual com sua potência de flutuar. Cada uma delas com um objetivo. Cada uma delas com seu desejo mais íntimo...

E então veio um momento importante para aquela casta de homens: precisavam esperar pela decisão das mulheres que flutuavam. Lá do alto elas poderiam decidir o que fazer. E os homens deveriam esperar... Só esperar. Depois do vôo e da flutuação, quem sabe suas mulheres lhes dariam alguma oportunidade?

E essa coisa toda de vôos e flutuações já estava enchendo era o saco de todo mundo. Principalmente daquele bando impotente de homens sem asa que já não sabia fazer outra coisa a não ser bisbilhotar o céu, à procura de suas esvoaçantes mulheres. Quando não, se metiam em rodas de bebida e conversa fiada, um olho sempre vasculhando as alturas, de soslaio.

Vai daí, que elas que flutuavam, iam meio sem rumo, cada uma para um lado, ao sabor da brisa e do próprio gosto de pairar sobre as cabeças deles, lá embaixo. Coisa oposta se dava com eles, que cada vez mais permaneciam ao redor de uma mesa de cachaça, conversa cada vez mais concentrada em suas mulheres voadoras. Como resultado lógico da equação, muita cachaça e conversa deram a eles uma perspectiva de decisão. Elas, no entanto, cada qual com seu vento, cada qual com sua brisa, se espalhando pelo ar...

E numa manhã de domingo aconteceu. Quando a mulherada toda já infestava o céu com seus bamboleios flutuantes, cada qual mais estufada e leve que a outra, eles saíram sorrateiros de sua roda de cachaça. Foi aí que seus estilingues começaram a lançar pedrinhas miúdas. Logo uma dessas pedrinhas, pequena, mas pontiaguda, atingiu a bunda de uma das mulheres flutuantes. Na mesma hora ela começou a murchar, em piruetas e reviravoltas tão rápidas, que quase não deu tempo de vê-la se espatifando na areia.

Isso bastou para encorajar todos eles a lançarem pedrinhas e mais pedrinhas em direção a suas mulheres voadoras. E não dava outra. Era só atingir a bunda de uma delas para assistir aos desengonçados, indecisos e rápidos vôos de volta ao chão. Em pouco tempo puseram todas em terra, completamente desnorteadas e confusas. Batiam a mão nos traseiros, sacudindo a poeira do tombo, e cambaleavam em busca de um refúgio para o susto momentâneo.

Naquela tarde eles vibraram muito. E eufóricos, foram noite adentro, cantando e cachaceando, numa alegria indescritível de quem tinha vencido. Em dado momento, começaram a cair pelos cantos, embriagados de tanta glória e cachaça, até que o último que restou em pé foi-se embora, sem apagar a luz.

A manhã já pretendia terminar, sol alto e forte, quando o primeiro deles esfregou os olhos. Ardiam de tanta luz e raspavam como se houvesse areia. Ficou prostrado nesse nada de seu acordar por um bom tempo, até que, aos poucos, os demais foram se erguendo a custo e com vagar. Não diziam nada, pois sequer se davam conta do que lhes acontecia. Beberam água gelada, depois água de coco, depois sal de frutas. Alguns vomitaram.

Então um deles, o primeiro que teve forças para erguer a cabeça rumo ao azul profundo do céu, firmou a vista num pontinho. Depois noutro, e mais outro... De início achou que seus olhos ainda estivessem pontilhados de ressaca. Mas depois conseguiu firmar a vista numa dessas minúsculas referências. Eram elas! Nítidas, claras como a manhã que já quase ia a termo. Flutuavam outra vez. E todos se abismaram, lá na ressaca de cada um, com o que viram. Suas mulheres voavam outra vez, cada qual com um forte protetor de couro na bunda, só por precaução.

___________________________________________________________________________

Publicado na coletânea "A Pizza Literária - oitava fornada" - 2004
Publicado nos Anais da "VII Jornada Médico-Literária Paulista"

Campos do Jordão - 2003
___________________________________________________________________________

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...