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23.4.10

Quem quiser acreditar, que acredite







Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as pernas finas
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.

(João Cabral de Melo Neto em “Morte e Vida Severina”)








Seu moço, tem certas coisas neste mundo que... Ói qui! Só vendo. Quando se pensa que de tudo um pouco já se viu, pronto. Acontece. Até que é possível imaginar, às vezes, que a imaginação foi feita bem pra isso. Mas quando se vê mesmo, alí, na hora em que está acontecendo... Ah... É aí que é o negócio. Já vou logo prevenindo dessas coisas pra que depois não se diga por aí que o caso que vou contar é desses que só acontece na cabeça da gente, coisa imaginada e não ocorrida.

Dezessete filhos tinha Severino. Dezesseis moças e um só rapaz. E teve um outro que Zefa não chegou a parir. Severino já foi retirante e hoje trabalha na construção civil. Tem casa de alvenaria, construida tijolo a tijolo num terreno que nunca teve dono certo. No começo não. Quando chegou, só Maria Zelinda era nascida, e Maria Zoraide ainda crescia no ventre da mãe. Foram morar no barraco de Pedro, que veio antes, sozinho. Depois Pedro ajudou a erguer outro barraco, quase ao lado do seu, pra melhor acomodar a família, e por esse tempo já Maria Zoraide brincava de boneca com Maria Zelinda, e Zefa tinha nos braços a miúda Filomena. Severino vinha da obra só na sexta-feira à noitinha e metia as mãos comidas de cal noutro trabalho, que era construir a própria casa. Pedro, quando voltou de Maxaranguape, trouxe o resto da família, que não era mais que Madalena e Marcelinho, menino seco feito aquele sertão que ficou pra trás. Severino comprou um frango assado no dia em que Pedro voltou mais a mulher e o menino, pois muito favor devia a Pedro.

Mas isso foi coisa de quando tudo começou e só se conta essas passagens que é pra ficar bem claro que Severino e Pedro não se conheceram outro dia. E também não é necessário nomear todas as outras filhas que Zefa pariu até que chegasse o derradeiro, este batizado Pedro Severino, homenagem mais que combinada dos pais ao amigo, vizinho e agora compadre. Para entender o resto desse caso que agora lhes conto, importa que se saiba apenas de Severino, de Maria Zelinda, de Zefa, de Madalena, de Pedro e de Marcelinho, muito embora já se tenha falado de Maria Zoraide que alguma coisa influiu nos fatos que aconteceram. Só que, pensando melhor, não é justo que se deixe de mencionar as outras treze filhas de Severino. Primeiro para que a contagem fique bem certa, e segundo porque de uma forma ou outra essas meninas todas estiveram presentes na história. Pois assim, as outras treze eram, na ordem em que vieram ao mundo: Maria Helena e Helena Maria, gêmeas, Edilene, Justina, Virgilene, Josefina, Kátia Cibele, Honorina, Wanderlisa, Angilene Maria, Georgina, Ana Priscila e Kátia Cilene. Pronto. Dezessete, já contadas as mais velhas e o rebento caçula de quem já se falou.

Quando Pedro Severino veio ao mundo, o pai já estava mais do que certo e conformado: só sabia fazer mulher. Maria Zelinda, a filha mais velha, tinha então dezoito anos. Viçosa, bonita, cheia do esplendor da juventude. Depois dela a escadinha de meninas. A cada ano, alí entre outubro e dezembro, a barriga de Zefa enorme, era sempre a esperança de que um menino viesse fazer a alegria de Severino, esperança essa que se adiava para o próximo parto, até que um dia se realizou com a chegada de Pedro Severino. Saco roxo, alardeou Severino, agora tenho lá em casa um do saco roxo! Zefa podia prever, finalmente, um descanso. Não passou ano, desde Maria Zelinda, sem carregar o peso de uma criança crescendo no ventre. Agora esperava um pouco de sossego, visto que o saco roxo de Pedro Severino era a realização do grande desejo do marido. Pois foi o que sucedeu.

A extensa prole por si só justificava a vasectomia que os amigos, a muito custo, convenceram Severino a realizar, ainda mais agora que finalmente o esperado menino fazia parte da família, e Zefa já tinha idade comprometedora para continuar engravidando ano após ano. Temendo que a tal operação viesse a prejudicar sua condição de cabra macho, Severino adentrou hospital, prometendo acabar com a raça de médico e de quem mais lhe convenceu a tomar a decisão de deixar de procriar. Compadre Pedro não era dos que se sentia mais à vontade para convencer Severino, pois em toda vida só um filho tivera, coisas lá da saúde de Madalena. Mesmo assim, acompanhou o compadre ao hospital e solidarizou-se com ele, uma semana depois, quando Severino confidenciou-lhe estar se sentindo um verdadeiro capado, coisa que na semana seguinte Severino jurava que não era. Bem, melhor tomar outro rumo, que essas coisas da intimidade dos outros só interessa mesmo a cada um e pronto.

*

É, seu moço... Eu já lhe disse que tem coisas que acontecem neste mundo que só presenciando pra se acreditar. Pois confirmo que é assim mesmo. Marcelinho, do qual até aqui tão pouco se falou, por ser arrimo de família saiu livre do exército. Estudou até o último ano de ginásio e de marreteiro virou feirante. Numa perua velha comprada a prestação com as economias do pai ajudando, carregava toda manhã os caixotes de legumes para montar sua banca. Estava com vinte e um quando confidenciou a Pedro que estava pretendendo namorar Maria Zelinda, a mais velha de seu Severino. Pretendendo não. Já havia seis meses que namoravam sem ninguém saber ou desconfiar.

Pedro achou por bem deixar tudo muito bem esclarecido e fez ele mesmo o anúncio do namoro a compadre Severino, que pensou dois ou três dias antes de dizer que permitia, desde que o namoro fosse sempre na sala e estando presentes todas as irmãs de Maria Zelinda mais a mãe e Pedro Severino, caso ele não estivesse. Foi assim que Marcelinho e Maria Zelinda oficializaram namoro e tiveram a permissão dos pais para, aos sábados, se encontrarem na sala da casa de Severino. Também vinham para o encontro Madalena e Pedro, e todos ficavam na sala vendo televisão. Aos namorados era reservado um lugar no sofá e a criançada toda podia ficar sentada no chão, sem fazer muito barulho que era pra não atrapalhar a novela. O pequeno Pedro Severino era o centro da roda de irmãs, a brincar com uma boneca de pano. Zefa e Madalena faziam o café e umas rosquinhas doces que eram servidas na sala repleta. Pelas dez e meia ou onze no máximo, Severino oferecia ao compadre Pedro um licorzinho de jenipapo, senha para que Marcelinho e Maria Zelinda já fossem largando um da mão do outro, e para que as crianças fossem rumando para a cama. Pouco depois era no portão, onde Severino e Pedro se apertavam as mãos, Madalena e Zefa diziam até amanhã e Marcelinho e Maria Zelinda trocavam um rápido beijo, não raro sob os olhares de um punhado de meninas debruçadas na janela do quarto. Mas assim foi só no princípio de na¬moro, pois um ano depois as irmãs de Maria Zelinda podiam ficar brincando lá fora, o que já liberava considerável espaço na sala, e permitia que apenas os adultos, assim entendidos os pais, e incluída a presença de Maria Zoraide, que não perdia capítulo da novela das oito e dispensava a correria das outras irmãs na rua.

Pedro Severino já corria com as irmãs, sempre de chupeta na boca e arrastando a encardida boneca de pano, coisa a que Severino não dava importância, mas Pedro olhava com certa restrição, embora não dissesse palavra. Situação também que não durou muito, pois um ano depois, um pouco por iniciativa própria e outro pouco pela insistência de seu Severino, Marcelinho comprou alianças e, ele mesmo, pediu permissão para noivar, ganhando com isso a liberdade de se encontrar com Maria Zelinda também às quintas, vigiados somente por Maria Zoraide no portão. E assim iam correndo os dias naquela rua da periferia, até que um dia aconteceu o que tinha que acontecer mesmo.

É, seu moço... Já lhe disse mais de uma vez e não preciso repetir. Se quiser acreditar no restante deste caso que acredite e se não quiser que deixe de acreditar, mas que aconteceu, aconteceu. E lhe digo mais: se o desfecho desse caso não terminou em coisa pior, foi só pelo fato de terem as duas famílias tão íntimo relacionamento desde longos anos, quando vieram do Rio Grande do Norte, primeiro Pedro e depois Severino. Fato é que Zefa, que larga experiência tinha nesses assuntos, reparou que a filha Maria Zelinda vinha engordando mais que a conta e foi logo se agoniando. Fosse só o viço da juventude e caldo de mocotó com farinha, estaria o corpo de Maria Zelinda crescendo por igual e não somente em certas partes. Chamou a filha num canto, longe das demais e questionou. Ninguém melhor que Zefa pra saber o que é que ocorria quando uma mulher... Não tô não minha mãe, repetiu Maria Zelinda mil e uma vezes entre lágrimas. Isso não seria possível em namoro tão vigiado. Mas, como é que se explica que o vestido branco já não abotoa? Não sei não, minha mãe, repetiu Maria Zelinda mil e uma vezes entre soluços e juras. Pois bem. Ficou nisso o questionamento, pois nem a mãe se convencia nem a filha se explicava. E de que jeito misterioso a coisa tinha ocorrido, se nunca Marcelinho e Maria Zelinda puderam ficar a sós, isso ninguém saberia explicar.

Mas, pelo sim, pelo não, Zefa achou melhor encontrar a tempo uma solução, e essa solução era muito fácil de encontrar, pois somente uma existia. Severino nem imaginava do ocorrido, pois pouco reparava em Maria Zelinda e era muito difícil saber detalhes de tanta menina, cada qual meio parecida com a outra na feição e no corpo, guardadas as diferenças próprias da idade de cada uma. Tinha lá certa diferença na feição de uma ou outra, mas entre tanta menina, queria que fosse tudo igual feito Maria Helena e Helena Maria, estas sim nascidas de um parto só? E assim foi que Zefa dissimulou os motivos mas convenceu o marido que já era hora de Maria Zelinda se casar. Severino foi ouvindo dia a dia a lamúria da mulher até dar razão a ela e convocar toda a família dele, mais a de compadre Pedro, para uma reunião, feito aquelas do tempo em que Marcelinho e Maria Zelinda começaram a namorar. A meninada toda tomou assento, esperando o que viria pela frente. Zefa e Madalena fizeram café e rosquinha doce. Pedindo licença ao compadre, Severino se levantou e olhando primeiro para a filharada e depois para Marcelinho que segurava a mão de Maria Zelinda, foi dizendo:

SEVERINO
Pois me diga então, seu Marcelinho, tomou mesmo a decisão?
Afinal já faz um bom tempinho que está nessa enganação.
Já são dois anos namorando, outros dois só de noivado
Se pensa que estou gostando, o senhor tá muito enganado.

MARCELINHO
Não diga uma coisa dessas, pois eu nunca enganei ninguém
É o senhor que esta com pressa de ver sua filha dizendo amém.
Saiba o senhor que casamento não é só o sim diante do altar
Depende de muito acontecimento pra duas pessoas poder casar.

SEVERINO
O senhor deixe de conversa mole, pois sei disso, sou bem casado
E não é qualquer um que engole essa desculpa de esfarrapado.
Zelo pelo bem da minha filha, que aqui em casa existe moral
E também porque da minha família não quero ninguém falando mal

MARCELINHO
Pois fique tranqüilo o senhor, que desse mal eu não padeço
Sempre fui muito respeitador desde o dia que eu lhe conheço.
A moral dessa nossa menina também é meu compromisso
Não bati em cego na esquina pra do senhor ter que ouvir isso.

SEVERINO
Nossa menina coisa nenhuma, que ainda não dei permissão
Minha filha não é qualquer uma pra que eu vá lhe dando a mão.
Por isso tenha mais respeito quando for falar nesse assunto
Pois senão arrumo outro jeito de acabar com esse "bestunto".

MARCELINHO
Quando eu disse que era nossa, foi só uma maneira de falar
E desse jeito não há quem possa nessa conversa continuar.
O senhor tá muito "arretado" por causa desse casamento
Tá mais parecendo um cão danado babando a todo momento.

SEVERINO
Já lhe mostro num segundo quem é que é o cão raivoso
Pois não há coisa pior no mundo do que me ver desgostoso
Diga só mais uma besteira, que eu furo esse seu terno
Na ponta da minha peixeira lhe mando pro fundo do inferno

MARCELINHO
Pois já lhe digo o que eu acho de toda essa sua valentia
Quem lhe fala é um cabra macho, seja de noite seja de dia.
E posso lhe dar uma prova, disso tudo que estou lhe falando
Dependendo da próxima trova, no chão a gente acaba rolando

SEVERINO
Menino, sabe o que eu acho, de todo o seu jeito atrevido?
Se mostra que é cabra macho, também vai dar bom marido.
E já não vou lhe dizer mais nada, agora nesse momento.
Zefinha! Prepare a buchada que nós vamos ter casamento.

*

Pois então, seu moço. Naquele dia ficou tudo assim resolvido, com a graça de Deus. No começo da conversa quase que Zefa se arrependeu de ter forçado o marido a apressar o casamento. Mas vendo que o resultado no final saiu melhor que a encomenda, anali¬sou a cara da comadre e do compadre, depois a do próprio futuro genro e não percebeu nenhuma contrariedade pelo sucedido. Melhor, teve certeza de que todo mundo estava um pouco aliviado com a conclusão, e tratou logo de passar para assuntos mais práticos, como onde acomodar o casal. Esse ponto também ficou logo decidido, diante do pouco espaço existente na casa de Severino. Maria Zelinda mais Marcelinho iriam para a casa de Pedro, assim e tão logo voltassem da igreja, o que pra todo mundo foi boa solução, principalmente para Maria Zoraide que dividia colchão com a irmã. Da festa deixa que eu cuido, falou compadre Pedro. O compadre já leva vida muito apertada com tanta gente na casa, disse ele abraçando o amigo. E muita conversa animada teve mais naquele dia em que Severino concedeu em definitivo a mão de Maria Zelinda a Marcelinho, embora Zefa continuasse com a pulga atrás da orelha em relação ao feitio do corpo de sua filha mais velha.

Quase que Maria Zoraide contou pra mãe como tudo aconteceu, mas como a coisa estava tão bem e resolvida, não disse nada sobre o dia em que acobertou o furtivo encontro íntimo de Marcelinho e Maria Zelinda dentro da Kombi. Tinha prometido segredo à irmã e agora tinha certeza de que o podia guardar sem medo de qualquer consequência. Esse dia não era pra se estragar com assun¬to tão delicado e secreto, razão pela qual Maria Zoraide guarda a consciência tranquila até hoje. E assim foi que a gravidez de Maria Zelinda teve amparo legal e da família, tudo selado por uma cerimônia simples na igreja do bairro e uma boa buchada servida a mais de trinta e cinco convidados, somente os mais chegados, e regada a cachaça que Severino fez questão de fornecer. Da cerveja Pedro não abriu mão, de sorte que o único gasto de Severino foi mesmo a cachaça e a despesa de cartório, pois também não era justo que compadre Pedro arcasse com tudo sozinho.

Da festa há pouco que se contar, pois festa de casamento é sempre assim, muito animada e falar sobre esta festa em particular não vai acrescentar nada a este caso. Só uma coisa há por bem de se mencionar, pois antes falar eu mesmo do que o fato vir contado por pessoas de fora: o menino Pedro Severino compareceu à cerimônia cuidadosamente arrumado pelas irmãs mais velhas, arrastando a boneca de pano e com um brinquinho na orelha. Severino até que preveniu as filhas para que tirassem do menino o brinco. Meu filho é do saco roxo, não é nenhum boiola, asseverou o pai. Mas as meninas o convenceram: ah, deixa pai, que é só hoje que é dia de festa.

*

É, seu moço... Foi assim mesmo que tudo sucedeu. Nada de mais pra que eu tivesse alertado o tempo todo que em certas coisas só se acredita vendo. Mas não foi só por isso que eu contei este caso. Coisa pior veio depois, quando Maria Zelinda teve o seu menino e ouviu do sogro a exclamação, este sim vai ser de saco roxo. Fato esse que Severino nunca ficou sabendo, pois poderia se ofender com o compadre. Pois é. Foi quando nasceu o menino de Maria Zelinda e Marcelinho que Zefa anunciou que esperava outro filho. Severino festejou, dizendo que essa tal de vasectomia não funcionava em cabra macho e que com certeza viria outro menino, pois ele já tinha descoberto o caminho. Compadre Pedro engoliu em seco quando soube do fato, e ficou um tempão olhando para o rosto de cada uma das meninas mais novas de comadre Zefa. Todas tão parecidas. Não lhe digo mais nada, seu moço, que essas coisas da intimidade das pessoas só interessa a cada um. Quem quiser acreditar, que acredite.

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Publicado na coletânea “Pizza Literária - Quinta Fornada” 
Legnar Editora - São Paulo - 1998
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Um comentário:

Adriana disse...

Que ótima história, Marcos. Estrutura fantástica! Adorei.

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