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19.12.10

Fragmentos e Abstrações















Inutilidades
(...) Vejo como completamente inúteis certas coisas que pretendemos que outros percebam em nós. Por exemplo, nossas demonstrações de indignação, seja lá com o que for. Normalmente alteramos feições e tom de voz para passar a impressão, o que pode não significar nada além de um teatro, e sempre soará falsa e hipócrita a teatralidade demonstrada, pois, mais cedo ou mais tarde, verão que não é bem assim nossa postura real no dia a dia. (...)

Carpe Diem
(...) Numa definição simplista, é mais ou menos como se o mundo real deixasse de existir. Ou melhor: é como se o mundo real pudesse e fosse realmente aproveitado como deveria ser. Sempre foi assim. Desde sempre. Os dias se abrem para que possamos fazer dele o melhor que quisermos e pudermos. Mas nem sempre acordamos de bom humor. E lá se vai uma parcela de nosso tempo, despejado pelo esgoto de nosso egoísmo de pensar que o mundo é que deveria girar em torno de nós. (...)

Sofrimento
(...) Eu diria que talvez seja essa a razão do sofrimento e da angústia: de repente a importância que damos a certas coisas, situações, ocasiões e pessoas é extremamente desimportante, uma vez que, simples e resumidamente, essas coisas, situações, ocasiões e pessoas não dão a mínimaimportância para o que pensamos a respeito e ao que queremos. É como pretender que as nossas prioridades e importâncias sejam também as alheias, e isso é sabidamente impossível, a não ser que se empreguem métodos de imposição. A individualidade deve sobrepujar qualquer tentativa egoísta de equiparação e de domínio. Da essência do exercício pleno e livre das prerrogativas individuais é que advém o singelo gesto de conviver em harmonia. Tudo que se pretender, além disso, poderá se tornar uma aberração. Sofrem e se angustiam os que pretendem gerir pessoas, coisas, situações e ocasiões apenas norteados pelo “seu” parâmetro de valores, sem levar em conta as individualidades. (...)

Justiça
(...) Tudo aquilo que o ser humano acha que sabe exatamente o que é, mas nunca consegue fazer plenamente. (...)

Morte
(...) Nunca pensamos na morte com alegria. Que estigma é esse que a morte carrega de ser o ápice amargo de uma existência, que nem bem sabemos como é realmente em sua plenitude? A morte é a única certeza da vida? É nada! A grande certeza que todos têm e temem confessar é a da própria vida. Nada sabem sobre a morte e por isso dela apenas fantasiam. A vida sim é finita enquanto dura. E a morte? Até quando? (...)

Vida
(...) Nunca se pensa na vida no tempo justo em que ela precisa ser pensada. Quando a estamos planejando, não temos ainda a bagagem suficiente para discernir. Quando já pensamos saber dela o suficiente para discernir, ainda temos muito a aprender e nem conseguimos dela, a vida, o suficiente para nos satisfazer. E, por fim, quando julgamos que a encontramos com total discernimento, quase em nosso apogeu, já é um pouco tarde para desfrutar tudo quanto dela achamos que discernimos e que ela tinha a nos oferecer. Que merda! (...)

Deus
(...) Basta olhar ao lado. (...)

Amor
(...) A dificuldade de saber como deve ser o amor é a mesma de interpretar o que o mundo ao nosso redor pensa dele. Há que se levar em conta nessa análise o tipo de amor que se quer analisar. O intangível, que percorre a alma de certas pessoas, vive da gratidão pela possibilidade de se dedicar a ele. O profano, que trafega nas veias dos eufóricos, vive da gratidão pelo momento vivido, ainda que efêmero. E tudo é amor do mesmo jeito e sabor. Tudo depende do ponto de vista. (...)

Ódio
(...) Palavra a ser abolida. (...)

Olhares
(...) Os olhos são o espelho da alma. Eu sempre penso que poderia me aperfeiçoar na análise dos olhares com que as pessoas nos contemplam nos momentos cotidianos. Penso também que poderia saber interpretá-los melhor, pois isso seria extremamente útil para todos, mas sempre percebo que é muito complicado fazer essas coisas. No entanto, sempre olho na alma das pessoas, através de seus olhos, mesmo semo pleno domínio dessa interpretação. Com isso sempre sei um pouco mais do que elas pensam que não sei e que nunca gostariam de me revelar. Muito mais do que elas pensam que sei. E sempre, invariavelmente sempre, consigo entendê-las um pouco melhor. Mesmo que elas nem suspeitem disso. (...)

Reciprocidade
(...) Aprendi que nunca se deve esperar nada como troca justa por qualquer coisa que fazemos, seja ela boa ou ruim. Primeiro porque seria muito egoísta esperar que as coisas boas que eventualmente fazemos, deveria gerar algo igual como recompensa. E depois, porque percebo que as coisas ruins que sempre fazemos raramente nos punem com igual rigor. O que é muito sensato. (...)

Cumplicidade
(...) Dividir segredos, que por isso, deixam de ser segredos. Dividir o corpo e a alma em confissões. Apropriar-se do alheio em surdina. Aprimorar-se na decifração de sons, sensações, palavras, trejeitos e coisas afins que não lhe são de direito. Saber e não confessar. Confessar sem saber. Querer sem poder. E ter. Tudo isso exalta os sentidos e aprisiona a alma na mais completa cumplicidade. É pecado mortal, capital ou apenas uma (a)normalidade permissiva? Quem não é cúmplice de si mesmo? (...)

Rotina
(...) A impressão que tenho é que a mesmice das coisas acaba encurtando o tempo de forma muito acelerada. Quando estamos no alvorecer de um dia supostamente de rotina, cada minuto tem no mínimo, uns dez segundos a menos. A previsibilidade do que vai acontecer no instante seguinte diminui o tempo. Não podemos interferir no processo. Talvez por sabermos exatamente como vai ser o próximo segundo, deixamos de contá-lo. Daí, o subtraímos de nossa vida de forma inconsciente, mas inexorável e irreversivelmente.

Apesar disso, acho que foi pelo desarranjo dessa consciência de perda de tempo decorrente do ritual de minha vida, que acabei encontrando tempo para pensar em coisas tão inúteis quanto esta tese que agora me ocorreu. Assim, pensei também nas formas de driblar a mesmice, de dar um tombo nos inexoráveis segundos iguais de cada um de meus dias, e de contá-los todos, como se não os tivesse perdido. Talvez eu só quisesse com isso prolongar minha existência, que vinha sendo subtraída covarde e rudemente de preciosos momentos.

Mas não deu certo. No segundo dia em que eu vinha pensando nessa complexa equação, enquanto dirigia para o meu trabalho, pelas mesmas ruas de sempre e parando no mesmíssimo e eterno engarrafamento de meus dias iguais, me distraí completamente. Minha abstração advinda dessa mesmice me fez perder a noção de qual era o pedal do freio. Assim, permiti que batesse o pára-choque da frente de meu carro no pára-choque traseiro do carro que ia à minha frente. O pior de tudo, é que a mulher que o dirigia era brava demais. Custou um tempão para me desvencilhar da situação.
E lá se foi toda a minha tese. Por fim, concluí que se a mesmice pode acelerar o tempo, a falta de freio pode recuperar muito do tempo perdido, embora não seja ainda a melhor forma de resolver o problema. Preciso pensar um pouco mais nessa profunda questão filosófica. (...)

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Publicado na coletânea "A Pizza Literária - décima primeira fornada" 
Rumo Editorial  - São Paulo - 2010
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