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13.2.15

O valentão, as medalhas da Pirani, as figurinhas da Copa, o guarda-civil, Maria Pum...


Era uma manhã qualquer do mês de outubro de 1962. As crianças do então curso primário do Grupo Escolar Dr.Murtinho Nobre chegavam aos bandos para o início das aulas daquele dia. Alguns vinham acompanhados das mães. Muitos sozinhos. A calçada em frente à escola fervilhava de uniformes azuis e brancos. Azuis eram as calças curts dos meninos e a saia de pregas das meninas. As camisas, brancas, todas elas.

O guarda-civil, impecavelmente vestido de azul marinho, quepe de ponta, aba arredondada, com o símbolo da corporação reluzindo ao sol, parava vez por outra o trânsito dos poucos carros de então para a travessia de mães e crianças. O burburinho soava alto. Gritos e risos misturavam-se ao apito do guarda. José era seu nome. “Zezinho” para as crianças e mães acostumados a vê-lo na porta da escola há longo tempo.

No portão, mães beijavam crianças se despedindo e desejando boa aula. Os que vinham sós acotovelavam-se querendo entrar. Dona Carmela, gorda e grisalha inspetora, vigiava atenta cada movimento das crianças que adentravam o portão estreito que dava acesso ao corredor em declive. No final do corredor, o pátio coberto era uma grande algazarra. Meninos corriam de um lado para outro, alguns portando as malas a tira-colo, outros de mãos vazias. Num canto do pátio, muitas malas se amontoavam, misturados a algumas blusas de frio azuis, que uma ou outra mãe mais precavida fizera o filho vestir antes de sair de casa. Afinal, era primavera, e a temperatura bastante agradável nas primeiras horas da manhã.

As meninas reuniam-se em incontáveis grupos, onde quatro delas, no centro de cada grupo, recitavam rápidas estrofes enquanto as mãos se cruzavam e as palmas se juntavam, em movimentos precisos. Algumas meninas também corriam, juntando-se à euforia mais acentuada dos meninos. O pátio se enchia mais de crianças a cada minuto. Cada um que chegava juntava-se ao seu grupo e à sua brincadeira.

Uma campainha, estridente e em alto volume, alterou de repente o comportamento de todas as crianças. O pátio emudeceu. A correria foi paralisada como por encanto. Os versos das meninas silenciaram e as mãos pararam de bater. Nenhum movimento. Uns poucos ruídos, abafados, chegvam da rua.

No pátio, Dona Carmela passeava entre as crianças paralisadas pelo encanto da campainha. Olhava fixamente o rosto de cada criança, muitas com o rosto vermelho e suado. Algumas camisas fora das calças curtas. No silêncio, que chegava a ser assustador, podia-se ouvir os passos arrastados da inspetora, chinelas de couro e vestido largo estampado. Era como um general passando a tropa em revista.

Nesse ritual, conhecido pelas crianças como o primeiro sinal, não havia quem se atrevesse a falar, andar, rir, movimentar-se. Tornavam-se estátuas mudas. Tremiam só de pensar na severa autoridade da Dona Carmela que fatalmente era posta em ação ao menor descuido, ao menor gesto de desrespeito à regra do silêncio. Ainda que não houvesse um só movimento das crianças nessa hora, era comum ouvir a voz sibilante da inspetora, ralhando. Parecia apenas querer dar inequívocas demonstrações de poder e força.

E quando havia o motivo... Alguém que desse mais um passo após o sinal. Algum risinho que escapasse. Uma palavra... E nessa manhã qualquer do mês de outubro, a voz de Dona Carmela ressoou no silencioso pátio:

 Você não ouviu o sinal, menino?

As crianças tremeram. Podia ser com qualquer menino. Ninguém ousou arriscar voltar os olhos para o fundo do pátio, de onde veio o assustador troar. Aguardaram um ou dois intermináveis segundos, até que a pergunta retumbou novamente:

- Você não ouviu o sinal, menino?

Zé Emídio não teve tempo de esboçar uma reação sequer, paralisado pelo som que reverberou em sua cabeça e pela carnuda mão de Dona Carmela que já segurava sua orelha. O terror estampado no rosto suado e ainda mais vermelho, a camisa desfraldada.

- Sobe já pra Diretoria! – vociferou Dona Carmela largando a orelha de Zé Emidio, que ardia.

Sob os olhares das demais crianças, Zé Emidio subiu os dez metros do corredor que separavam o pátio do outro corredor que dava acesso à sala dos professores e também à Diretoria, os olhos mareados, uma lágrima escorrendo pelo rosto, a orelha direita ardendo.

- Alguém mais quer fazer companhia ao engraçadinho?

Silêncio sepulcral. Quem se atreveria a esboçar um gesto que fosse? Embora acostumados com a voz e o autoritarismo da inspetora, as crianças congelavam nesses momentos. Intermináveis segundos se passaram até a voz soar novamente:

- Quando tocar o segundo sinal, eu quero ver alguém mais na correria! Quero ver se tem algum metido a engraçadinho que não sabe respeitar o sinal!

Tocou, finalmente, o segundo sinal da campainha, que já não aparentava ser tão estridente ante a impetuosidade da voz da inspetora, instantes atrás. Em silêncio, e caminhando cuidadosamente até suas malas, as crianças foram aos poucos formando as filas junto com os demais alunos de suas classes.

Filas formadas, a da terceira série “A”, a primeira delas, começou a subir o corredor em silêncio, após o comando de sua professora, Dona Alcina, rumo à sala de aula. Ao passarem pelo cabisbaixo e choroso Zé Emídio, que permanecia de pé na ponta do corredor por onde assomavam as professoras, as crianças lançavam um rápido e receoso olhar. Todos sabiam o que acontecia nesse caso. As demais filas seguiram a primeira, até que o pátio se esvaziou.

***

Começo de ano letivo. Mário Harada sentava-se na primeira carteira dupla, na fileira delas que ficava defronte à mesa da professora. Ao todo eram cinco fileiras de carteiras duplas. Os alunos da classe, cerca de quarenta, sentavam-se aos pares. A critério de Dona Alcina, seus lugares eram trocados: meninos sentavam-se ao lado de meninos e meninas ao lado de meninas; ou então eram formados casais para as acomodações na classe, mas esta não era a disposição preferida de Dona Alcina.

De maneira que a formação em vigor naquela manhã de março era a de meninos sentando-se ao lado de meninos e meninas sentadas ao lado de meninas. Por alguma razão, bem conhecida por Dona Alcina, mas incógnita para os alunos, os meninos nas primeiras carteiras.

Foi nessa manhã que pela primeira vez manifestou-se a característica mais marcante de Mário Harada e que seria uma constante durante todo o ano. Aconteceu logo após a chamada, feita por Dona Alcina religiosamente após todos estarem sentados em seus lugares.

Na ordem alfabética da chamada, Mário tinha o número vinte e três. Mas por volta do número doze já esta entretido numa brincadeira qualquer com seu colega de carteira, razão pela qual, ao ser chamado o número vinte e três, Mário não respondeu.

- Vinte e três – repetiu Dona Alcina, olhando na direção de Harada, que desatento e indiferente cutucava o companheiro de carteira.

Dona Alcina era paciente, até o extremo às vezes. Dificilmente se zangava. Quase nunca brigava com os alunos. Apesar de severa, costumava amenizar o rigor do ensino da época com alguma brincadeira com os alunos, sempre que a ocasião era propícia. Sabia impor os freios, quando necessário, de forma a manter a classe sempre sob seu comando.

- Abre os olhos, Harada! – brincou sorrindo a professora com o distraído japonezinho de cabelos espetados, que continuava a cutucar seu vizinho.

Bastou isso. A classe toda gargalhou com a piada. Harada, finalmente percebendo que era com ele, corou, levantou a mão e respondeu a presença. Dona Alcina anotou, sorrindo. As crianças ainda riram até um delicado “já chega” da professora. Numa das últimas carteiras ocupadas pelos meninos, Luís não conseguia parar de rir. Ria e repetia a frase da professora: “Abre os olhos, Harada...”

- Luís!

Ao tom um pouco mais ríspido da voz de Dona Alcina, Luís se calou. Mas a esta altura o seu destino já fora traçado por Mário Harada. Com o rosto contraído pela raiva e pela vergonha de ter sido alvo da pilhéria geral, Harada voltou-se em direção a Luís, e num gesto característico, batendo um punho cerrado contra a outra mão espalmada, decretou a sentença: “vou te pegar na saída”.

O rápido incidente não teria outra repercussão qualquer, não fosse alguns dos meninos terem percebido o gesto de Harada. Instigaram. Haveria briga na saída das aulas. Uma diversão a mais. E assim foi. Luís foi surrado sem dó nem piedade pelo oponente.

***

Na semana seguinte, Harada confirmou sua valentia. Sem motivo aparente, cerrou o punho e bateu-o contra a palma da outra mão, olhando na direção de Toninho. Mesmo destino que Luís.Iria apanhar na saída. Mas, por quê? Ninguém ficou sabendo. Outra briga. Outra surra aplicada sem piedade por Mário Harada.

Passou a ser temido. O japonês era bom de briga. Tinha consciência de sua força e estratégia.  Que não se metessem com ele. Que não ousassem desafiá-lo. Motivos para briga? Para quê? Harada entendia que precisava manter o domínio sobre os demais meninos, iniciado naquela manhã de março quando bateu em Luís. Precisava exercitar sua pretensa superioridade sobre os demais.

E assim se passaram os meses daquele ano de 1962. Dona Alcina ouviu falar pela primeira vez das constantes brigas provocdas por Harada em agosto, quando a mãe de uma das vítimas veio reclamar. Conversou, aconselhou, explicou, fez sermão. Citou Zé Emidio como exemplo. Harada disse: “sim, senhora.”

Zé Emídio por esse tempo tinha fama bem diferente. Aluno comportado, estudioso, várias vezes laureado com a medalha de primeiro da classe, que era entregue num cinema do Sacomã sob o patrocínio das Lojas Pirani. Consagração pública à qual compareciam todos os alunos da escolha, e onde se assistia a um filme de cowboy após as aplaudidas condecorações. Exemplo a ser seguido.

Harada e Zé Emídio sentavam-se na mesma carteira em agosto, e tinham um relacionamento até certo ponto cordial. Zé Emidio não era dado a brigas ou provocações. Tinha também uma fama a zelar. Em setembro, foram separados, numa das muitas mudanças de lugar promovidas por Dona Alcina. Zé numa carteira dos fundos. Harada no outro extremo da classe. Voltaram a sentar-se no mesmo banco em outubro.

Nesse meio tempo algumas outras brigas aconteceram, provocadas por Harada, que se esquecera rapidamente da conversa com a professora no dia em que fora denunciado. Chegou a bater até mesmo em algumas meninas. Maria Isabel foi uma delas. Maria Pum, a chamavam, pois diziam que as eventuais flatulências lá no fundo da classe eram obra da espivetada e sardenta lourinha, sempre de cabelos lisos amarrados em forma de rabo-de-cavalo por um laço colorido. Volta e meia estava metida nas brincadeiras e confusões dos meninos.

***

Dona Alcina não pôde deixar de manifestar sua surpresa ao ver Zé Emídio de pé na ponta do corredor, assustado, as lágrimas correndo pelo rosto. Perguntou: “o que é que houve?”, mas o menino soluçou somente. A terceira série “A” já passava pelo corredor e a professora, sem entender o que acontecia, seguiu rumo à classe, no segundo andar, acompanhando seus alunos. Era preciso acompanhá-los para manter a disciplina.

Quebrou o tradicional protocolo nesse dia. Antes mesmo da chamada, pediu que todos aguardassem um pouco, em silêncio. Saiu e caminhou de volta até a Diretoria. Alguns minutos se passaram. Na classe, o borburinho já se avolumava quando Dona Alcina assomou à porta, trazendo pela mão Zé Emídio, que de cabeça baixa e ainda soluçando caminhou até seu lugar, ao lado de Harada.

- O Zé Emídio levou uma bronca da Dona Carmela porque estava distraído e não percebeu o primeiro sinal, só isso! – avisou a professora, iniciando imediatamente a chamada.

A orelha de Emídio ainda ardia. Algumas meninas cochichavam no fundo da sala. Os números de chamada era ditos em voz serena. Número 1. Presente. Número 2. Presente... Harada cutucava Zé Emídio, que mantinha a cabeça baixa. Harada provocava, ria-se dele. A certa altura, Zé Emídio deu uma forte cotovelada no estômago do japonezinho. Harada puxou Emídio pelo ombro e fez o fatídico sinal.

Bastante atormentado pelo constrangimento do castigo de há pouco, e com os olhos lacrimosos fixos em Mário, Zé Emídio disse: “tá certo!”. Ninguém percebeu esse pequeno e breve entrevero, exceto Maria Pum. Na hora do recreio a notícia se espalhou entre as crianças como se alastra o fogo. Os da quarta série “B”, única classe só de meninos em toda a escola, iniciaram apostas. A paga deveria ser em figurinhas da Copa do Mundo, cujo bi-campeonato o Brasil conquistara em julho.

Hora da saída. As costumeiras mães que traziam e buscavam os filhos na escola estavam de prontidão. Recebiam as crianças, conversavam um pouco e tomavam o rumo de casa. Um pouco mais adiante do portão, na primeira esquina da Ouvidor Portugal, uma rodinha alvoroçada se formava. “O Harada vai pegar o Zé Emídio”. Alguns, incrédulos ao saberem da notícia, duvidavam que o o Zé da terceira “A”, o das medalhas da Pirani, tinha aceito um desafio desses. Zé não era disso! E logo com o valentão do Mário Harada, que batia em todo mundo.

Percebendo o princípio de tumulto, o guarda Zezinho tratou de dispersar o aglomerado de crianças. Que cada um fosse para sua casa e que deixassem de brigas. Alguém lembrou das figurinhas da Copa do Mundo. Muitas apostas feitas. Melhor resolver isso logo. Sugeriram o campinho, no quarteirão de cima. Longe do guarda-civil. Foram. Subiram a Gaspar Fernandes num alvoroço. “Harada! Harada!”. Era o favorito.

Uma grande roda se formou na esquina. Mais de cinquenta meninos e meninas. Maria Pum ensaiava um coro de torcida para Zé Emídio. A torcida de Harada vaiava. Os contendores jogaram as malas para um canto. O japonês tirou a camisa. Zé imitou. “Pega ele, pega!”

Alguns socos trocados a esmo e logo rolavam pelo chão de terra, engalfinhados numa luta feroz. Harada agarrou o pescoço de Zé Emídio com um braço, junto ao seu corpo, e desferia socos. A gritaria em volta era ensurdecedora. Isolada em sua torcida, Maria Pum pedia a reação de Zé Emídio. Apostara dez figurinhas da Seleção Brasileira nele, incluindo as de Pelé e Zagalo. Não poderia perder. E tinha também a coisa da desforra da surra recente que tomara de Harada.

Não se vislumbrava um vencedor, bom tempo depois de iniciada a briga. Zé Emídio continuava na mesma posição, o pescoço preso pelo braço de Harada, recebendo socos na cabeça. Algumas mães, que subiam a rua com seus filhos, acudiram. Tentaram separar. Zé Emídio mordia a barriga de Harada. Pediram ajuda. Veio o guarda Zezinho, correndo rua acima.

Separaram os dois, finalmente. Zé Emídio bateu com a mão a poeira das calças curtas, que pouco mostravam do azul, tão sujas de terra. Vestiu a camisa, colocou a mala de material a tira-colo, olhou em volta. A plateia silenciosa afastou-se, dando passagem ao lutador, que seguiu o rumo de sua casa.

Harada tinha a marca roxa dos dentes em sua barriga. Um pequeno filete de sangue. Escoltado por Zezinho e por duas mães aflitas que ajudaram a separar a briga, foi levado de volta à escola. Dona Carmela limpou alguns arranhões com algodão e água oxigenada. Passou mercúrio cromo no ferimento da barriga. Mário chorou.

As mães dos briguentos foram chamadas no dia seguinte, para tomarem ciência da suspensão imposta aos dois. Pelo que se soube, as apostas não foram pagas, muito embora Maria Pum tivesse obtido na marras as dez figurinhas que apostara com um menino da quarta “B”. Harada ainda fez o gesto característico de briga mais algumas vezes, para um ou outro menino. Nenhuma ameaça mais se consumou. Zé Emídio foi ao cinema do Sacomã, na festa da Pirani, mais duas vezes naquele ano. Recebeu a medalha de honra ao mérito de final de ano, pelo desempenho durante todo o período. Quase todos passaram de ano, incluindo-se Zé Emídio, Mário Harada, Maria Pum e Toninho. Só três meninos e uma menina foram reprovados.

Muitas outras coisas ocorreram naquele distante ano de 1962. Lembrei-me desta história. Se apanhei de Harada? E por acaso eu também não era da terceira série “A”? 
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Publicado no livro "Contos & Encontros"
Legnar Editora - São Paulo - 1998
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