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25.9.16

Algumas coisas sobre ajoelhar e rezar



Cumprindo uma rotina que há muito eu realizava, fui visitar minha mãe numa tarde de sábado. Ela, já viúva e morando sozinha, exceto pela presença do Gordo, um velho e sossegado gato, tão velho quanto minha mãe poderia desejar que fosse, sempre esperou minha visita nas tardes de sábado. Na medida do que eu entendia ser "possível", eu cumpria o ritual das visitas. Obrigação de filho. Quando não dava para ir, lá ficava minha mãe, apenas com a companhia do velho gato.
            
Sempre achei que gatos e pessoas pudessem conviver muito bem nos propósitos dados pelo Ser superior que nos criou e nos conduz, quais sejam: um faz companhia ao outro até que, em algum dia, incerto e inesperado, um deles se vai. E aí, pronto! Acabam-se os desígnios da providência divina e deixam de existir deveres e obrigações, acabam as amarras e interrompe-se a cumplicidade entre gatos e pessoas. É nesse momento que gatos e humanos se separam, pelo menos temporariamente. Tanto quanto sucumbem as pessoas, assim há de acontecer com os gatos, que se entregam ao desígnio final, que é a morte, apenas ressalvando-se a questão do tempo em que isso ocorre.

Naquele sábado eu não me lembro como estava me sentindo: se obrigado ou desatento pela rotina do filho que visitava a velha e solitária mãe e seu velho gato; se saudoso do gato e de minha mãe; se simplesmente mecanizado pela insistência do tempo e da obrigação; se apenas cumprindo um ritual sem sentido e enfadonho, imaginando alguma punição ou consequência por minha eventual omissão, num possível dia do juízo que possa haver... Sinceramente não sei.  Naquele sábado eu só fui visitar minha mãe, como sempre fazia.

Ela não me pareceu tão bem naquela visita, como aliás poderia não estar tão bem em outros tantos sábados que a visitei antes, e eu nada percebera, talvez porque eu não tivesse prestado tanta atenção como naquele dia... Também não sei. O gato continuava, como sempre, num canto qualquer da casa, atento e vasculhando apenas as minúcias do silêncio, espreitando a solidão de cada móvel que permanecia estático, alheio à poeira do tempo que se insinuava. Lançou-me aquele olhar sábio e displicente e, com sua alma ingenuamente felina, cerrou novamente os olhos. Ele reinava em sua casa, na casa de minha mãe e que era dele também.

Aparente e rotineiramente tudo andava bem naquela visita de sábado à tarde. Contudo, houve um infarto naquele dia. Gaguejando ao telefone, chamei o SAMU. Eles vieram rapidamente, mas não o suficiente para que pudessem fazer algo. Não havia mais tempo para quase nada. A viatura nos levou ao pronto atendimento de um hospital. Nada mais a fazer. Minha mãe tinha partido, e o gato ficou na casa, solitário e sem saber que sua única companheira não estaria mais disponível.
            
Lembro-me que nesse dia eu me ajoelhei para rezar e pedi a Deus que não levasse embora, bem naquele momento, a minha querida mãe. Foi então que eu me dei conta que já fazia algum tempo que eu deixara em segundo plano o hábito de ajoelhar e rezar. Fosse para pedir ou agradecer, a oração me acompanhara por um bom tempo de minha vida, até que, provavelmente, tornara-se uma rotina e eu a relegara ao esquecimento. Não que eu houvesse perdido minha fé no Criador. Talvez tenha sido apenas o meu comodismo de achar que Deus tivesse obrigação de fazer tudo por mim. Então eu me senti frágil e infiel naquele momento em que temia a perda iminente e me ajoelhei. Como eu deveria pedir algo a um Deus que ficara esquecido num canto da minha vida? Por que eu deveria esperar d'Ele alguma coisa?

A partir daquele dia, hoje eu sei, fui instado a refletir um pouco mais sobre determinadas coisas. Era apenas o curso da existência, mas eu havia sido pego totalmente distraído. Num átimo, perdi minha mãe, o velho Gordo perdeu seu referencial. Desapareciam alguns laços e vínculos que antes me pareciam inabaláveis. A vida mudava para todos, indelevelmente. O Gordo perdeu sua provedora e companheira. E eu perdia naquele dia algo que não me dava mais conta de que um dia perderia.    
            
Esta não fora a primeira vez e nem seria a última em que me era dada a oportunidade de, ao menos por alguns instantes, poder refletir um pouco mais sobre o significado das coisas que não dependem apenas de ajoelhar, rezar e deixar tudo para que Deus resolva. A primeira vez foi quando perdi meu pai. Tudo muito parecido, pois a morte é sempre muito igual em seu propósito de tentar romper vínculos. Enfim, são desses fatos marcantes que se acaba tendo um aprendizado precioso. É isso o que me leva a transmitir a quem puder se interessar nas lições daquilo que recebemos sem ficar esperando sempre pela Providência Divina. Não que possamos, com isso, mudar os desígnios misteriosos da Grande Arquiteto do Universo. Na verdade, o mais precioso que possa haver seja entender o silencioso trabalho da maturidade na medida em que vai lapidando a nossa pedra bruta interior. Assim que houver oportunidade eu lhes direi sobre outras coisas. Por enquanto fica apenas um convite à reflexão.
            
Ah! Apenas para constar: o velho e pacato Gordo também se foi, só que numa manhã de segunda-feira e muito tempo depois. Após a morte de minha mãe nós o trouxemos para nossa casa, onde ele também reinou, sempre silencioso e retribuindo com gratidão e fidelidade à companhia de seus novos parceiros de jornada. Até naquele dia onde o propósito de sua presença também já havia sido cumprido.   

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Publicado nos Anais do XXVI Congresso Nacional da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores
realizado em São Paulo, de 22 a 24 de setembro de 2016.
Rumo Editorial - São Paulo - 2016
Terceiro lugar no Concurso de Prosas do evento

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